Por André Peixoto de Souza

Alguns comentários ao meu último tema foram vigorosos no sentido de dizer que “rico também comete crime”… “olha a Lava Jato”… “tem os políticos”… “crime é uma escolha”…!

É certo que eu não consegui responder a tudo por e-mail ou Facebook, mas me comprometi a escrever sobre isso. Então, lá vai.

PRELIMINAR ÓBVIA: crime é diferente de sistema penal (este último, o locus a que direcionei os excluídos do sistema capitalista).

PRELIMINAR IDEOLÓGICA: Primeiro a comida, depois a moral. BRECHT. (eu complemento: e SÓ DEPOIS, a lei).

Pega o Código Penal. Parte Especial. Apenas isso, pra ficar num texto curto.

Os crimes contra a pessoa: vida, corpo, saúde, honra, liberdade etc. Vai direto para o mais notório e vultoso: homicídio (no Brasil, o homicídio representa 85% dos presos por crimes contra a vida). Quais as causas? Eu digo: dinheiro e paixão. Três fatias pro dinheiro, uma pra paixão. Essa é a proporção, se não for menor ainda a fatia única! Homicídio por dívida de tráfico, por ponto de tráfico, por “combate” ao tráfico… Em vários estudos Brasil afora a motivação de homicídio por tráfico de drogas corresponde a aproximadamente 60% dos casos. Ainda por dinheiro: herança, patrimônio, dívida pessoal. De resto, a que indico ser passional porque movido pelas paixões humanas: motivo fútil, briga de bar, briga doméstica, ódio, raiva, ira, desavença, embriaguez, vingança, intolerância religiosa, racismo, homofobia.

Tráfico de drogas possui natureza evidentemente financeira. Os crimes dessa natureza são mais “racionais”, muito embora também movidos por alguma paixão: poder, desafio, status, reconhecimento. Quanto aos passionais: ora, quem consegue “acessar” o controle das emoções?

Qual é o elemento externo capaz de fornecer o controle da razão ou do sentimento [controlável]? Bem sabemos: a educação (IBGE 2010: 1% da população carcerária completou curso superior; 80% está entre o analfabetismo e o ensino fundamental). OBSERVEMOS A SINGELA RECEITA: quanto mais educação, menos violência, menos criminalidade. Onde está a educação? Nos centros ou nas periferias? Não me refiro a uma educação exclusivamente estatal, formal, mas a uma educação totalitária, sistêmica, que sai dos pais, das famílias, atravessa as escolas, internaliza na criança e RETORNA à família, aos pais. Quem tem mais chance de viver esse nível de educação (os liberais chamam isso de meritocracia), a pessoa “central” – acolhida pela urbe e pelas políticas públicas; ou a pessoa “periférica” – esquecida pelos governos e rechaçada/preconceitualizada pela comunidade central? ENFIM, pensando os anéis das cidades, quem tem mais chance de viver no contexto de menos educação e, por conseguinte, mais violência/criminalidade: o rico ou o pobre?

Os crimes contra o patrimônio são crimes econômicos por excelência (furto, roubo, extorsão, apropriação indébita, estelionato, fraude etc.). Quem comete furto ou roubo no Brasil? (outro top 5 das espécies nacionais: furtos e roubos respondem por 82% dos crimes contra o patrimônio). Não é o presidente de empreiteira! O mesmo para os crimes contra a propriedade imaterial. É verdade que alguns estudantes vêm aqui, principalmente no TCC, ao fim do curso. Mas, convenhamos, está no nome: propriedade. Insisto que a mesma lógica deva ser aplicada aos crimes contra a organização do trabalho – pertencentes àquela garantia do sistema capitalista que, no fim das contas, preserva a sua manutenção tal como está posto.

Seja como for, essas espécies de crime são cometidas por pobres ou por ricos? Nesse caso, tomando a última bateria como exemplo, só pode ser cometido (sujeito ativo) por empregador: empresário, normalmente. Mas repito: crime típico de pertencimento ao sistema produtivo atual. Quais as penas? 3 anos, a mais gravosa! Regime aberto ou ainda substituição por medida alternativa! Já as modalidades de furtos e roubos – os mais notórios da “categoria” – também encontram relatórios e estatísticas fundamentadas: são “braços direitos” do tráfico de drogas. A motivação é econômica, pecuniária – para valor de uso ou valor de troca! E a pena máxima de furto (dentre eles, a menor) – que remete à penitenciária (no semiaberto) – é maior do que a maior das penas máximas dos crimes contra a organização do trabalho.

Crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos. Motivação psicológica ou ideológica. Crimes contra a dignidade sexual: estupro, atentado ao pudor, assédio, tráfico de pessoa para fim sexual. Motivação psicológica ou financeira (no último caso). Crimes contra a família. Bigamia: a boa literatura brasileira chama de safadeza. Isso o Direito Civil resolve.

Abandono… motivação psicológica. Crimes contra a incolumidade pública: incêndio, explosão, inundação, difusão de doença, epidemia, curandeirismo etc. Motivações psicológicas e/ou financeiras. Crimes contra a paz pública. Incitação ao crime, associação criminosa. Mesmo assim, TUDO ISSO JUNTO chega a 3% da população carcerária brasileira.

Crimes contra a fé pública. Moeda falsa, falsidade ideológica etc. É necessário alguma instrução. Coisa de universitário: 8% da população brasileira. O mesmo acontece com os crimes contra a administração pública: peculato, concussão, corrupção, desobediência, desacato, tráfico de influência, contrabando, fraude de concorrência, sonegação previdenciária, falso testemunho, fraude processual etc. Esses sim atingem os ricos! População carcerária para esses tipos penais? 0,2%! MJ, 2014.

Portanto, é importante voltar àquela primeira preliminar que levantei no início: crime é diferente de sistema penal. Se ricos e pobres cometem crimes – numa proporção quantitativa escandalosamente distinta! – a mesma fórmula não serve para a ocupação do sistema penal.

Não tem Mensalão nem Lava Jato que dê conta de me convencer o contrário. Conta os presos! Quantos ladrões e traficantes e assassinos pobres? E quantos empresários corruptos e contrabandistas e sonegadores ricos? É um jogo de… digamos… 605 mil x 2 mil. MJ, 2014! Ou seja: 99,7% de um lado; 0,3% de outro!?

É a esse SISTEMA PENAL que me referi. Um sistema que banca – e mantém – essas diferenças! Espero que agora tenha ficado claro!

Insisto em dizer aos meus amigos críticos: seria muito bom se pudéssemos trabalhar a psique do criminoso rico, e tentar entender sem meias palavras porque um bilionário comete crime pra ficar mais rico ainda… É possível entender! Literalmente, Freud explica! Quem sabe para um próximo texto.

P.S.1: sobre as motivações do crime de homicídio há um estudo muito bom realizado em 2012 pelo Conselho Nacional do Ministério Público..

P.S.2: sobre a população carcerária brasileira, o último estudo do Ministério da Justiça (2014) está disponível aqui. (https://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf)

Fonte: Canal Ciências Criminais


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