Redação

O cientista político Miguel Lago, mestre em Administração Pública e diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), já classificou o presidente Jair Bolsonaro como um “fenômeno tecnopolítico” que, segundo ele, atuaria numa lógica de internet, inflando os apoiadores nas redes sociais.

Em casos como a crise do coronavírus, diz, o perfil de fidelizador dos seguidores mais fanáticos fica escancarado. Para Lago, há método no modo como o presidente ataca governadores, a imprensa e as recomendações do próprio Ministério da Saúde. “Se a ação de contenção (da pandemia) for bem-sucedida, ele consegue colher os louros. Se for malsucedida, diz que não tem nada a ver com isso, porque foi contra o isolamento social”, disse ao Estado.

O senhor já definiu Bolsonaro como um fenômeno ‘tecnopolítico’. Isso ficou escancarado com a cise do coronavírus?
A disputa do Bolsonaro é narrativa. Está sempre jogando com os seguidores dele. Precisa fidelizar essa base, da qual depende todo o sucesso dele no governo. Tudo o que ele faz é ou para expandir essa base, para que seja um pouco maior do que aqueles 15% que o amam de paixão, ou fidelizar o engajamento dessas pessoas: fazer manifestações, discurso de perseguição, dizer que não o deixam fazer nada etc. Todo mundo está dizendo que ele está perdido, acabado… Eu acho que ele está jogando com dois meses de antecedência. Tem método. Está jogando dentro do jogo dele, que é muito perigoso para a saúde pública. É isso o que acontece quando a política deixa de ser ancorada na realidade e só é ancorada no puro discurso político.

Como analisa essa estratégia?
Acho que ele está apostando em duas vias. Em uma delas, se a ação de contenção for bem sucedida, ele consegue colher os louros. Na outra, se for mal sucedida, ele diz que não tem nada a ver com isso, porque foi contra o isolamento social, a “histeria” que ele diz que a imprensa e os governadores estão instalando na população. Acho que ele está olhando para daqui a um mês. Vamos supor que a política de isolamento funcione. Isso significa que o coronavírus foi contido, mas que o maior problema é a recessão econômica. Se ele dizia que as medidas de contenção seriam responsáveis pela recessão, ele tira a própria responsabilidade diante da provável recessão que vamos viver. Narrativamente, está tentando ganhar mesmo que o Brasil tenha uma recessão tremenda.

A crise amplia a rejeição a ele?
Minha impressão é de que as pessoas que não gostam dele estão mais eloquentes, até porque ele tem dado muitos argumentos para isso. Mas acho que tem um fenômeno de classe também. As primeiras vítimas do coronavírus são pessoas de classe mais alta, que votaram majoritariamente nele. Para essas pessoas, chamar de “gripezinha” é extremamente ofensivo. Claro que, com uma queda grande da popularidade, isso abre espaço para a oposição construir um método, como é o caso dos panelaços, mas acho que ele ainda continua muito forte.

Há espaço para impeachment?
Até vejo a instalação de um processo de impeachment, porque ele está levando a briga com as instituições até a última consequência. Mas, politicamente, uma coisa é o Collor ou a Dilma, que tinham índices de popularidade minúsculos. O Bolsonaro tem um segmento da população fanático por ele. Mesmo com coronavírus, as pessoas vão para a rua. Essa parcela da população vai brigar. Seria um impeachment muito mais custoso do ponto de vista político.

Como o senhor avalia os panelaços?
O coronavírus é certamente a maior provação do Bolsonaro. Dependendo do desfecho da crise, pode derrubar talvez não o governo, mas a popularidade dele. Mas também acho que pode reacendê-la. E o que é mais extraordinário é que não tem nada a ver com as ações empreendidas pelo governo brasileiro, e sim pelos discursos que ele vai adotar e o modo como vai encaixar os desfechos da crise no discurso dele. Os governadores serão julgados pelas suas ações; os prefeitos, também. O presidente vai ser julgado pela sua habilidade de fazer discursos. É a aposta do Bolsonaro – uma aposta arriscada, mas que ele sempre fez e deu certo para ele.

O pronunciamento de terça-feira à noite reforça essa estratégia?
Ele está dobrando a aposta. Está bem ativo nisso e tentando forçar o embate. Acho que vai haver uma resposta da institucionalidade mais organizada, vamos ver o que os governadores definem. Mas achei que a resposta do Davi Alcolumbre foi institucionalmente clara. Não está havendo um embate no mesmo tom que o Bolsonaro faz porque essa é a linguagem dele, não das instituições.

O senhor escreveu no início do governo que o bolsonarismo abriria espaço para uma oposição de direita ao presidente. Os governadores João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC) se encaixam nesse papel?
Os dois governadores dos Estados mais afetados no momento são duas alternativas não à direita dele, porque isso não existe, mas duas alternativas de direita. Ambos estão tentando mostrar serviço e que os Estados vão conseguir conter o vírus. Até porque eles sabem que a saúde, em grande parte, é de âmbito estadual. Eles sabem que podem sofrer um banho de sangue nos hospitais. Estão tomando ações que, acho eu, estão um pouco tardias, mas são ações concretas: estão lidando com seriedade e tentando mostrar que sabem fazer política pública, o que o presidente não sabe fazer.

O que o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde já conseguiu constatar sobre os desafios do coronavírus para nosso sistema de saúde?
Conseguimos ver uma disparidade regional muito grande, tanto para leitos de UTI quanto para respiradores. O Brasil está muito mal equipado em termos de infraestrutura básica para atender essa crise. Além disso, estamos olhando toda a parte de custos de hospitalização. O mínimo que isso vai custar é em hospitalizações, então estimamos esse custo dependendo do nível de infecção. Se chegarmos a 20% da população infectada, o que é bem possível, nossa estimativa é que teremos, só para o Covid-19, um orçamento equivalente a todo o orçamento de internações do SUS no ano passado. Isso significa que ou você dobra esses recursos em tempo recorde ou direciona os do SUS para o coronavírus, mas aí as pessoas vão morrer não de coronavírus, e sim de outras doenças. Esse é o dilema.

Isso escancara um investimento baixo em saúde pública, como o senhor escreveu em artigo no New York Times?
Se compararmos o nível de investimento do Brasil com o de outros países que têm sistemas universais de saúde, nosso investimento é muito baixo. O Reino Unido tem 8% do PIB dedicado à Saúde pública; a Itália, que está esse pandemônio, quase 7% do PIB. Certamente, para o nível de ambição que o Brasil tem – atender 210 milhões de habitantes gratuitamente na Saúde, o sistema mais ambicioso do mundo – está investindo muito pouco. Cronicamente. Não é uma novidade. Mas, dentro do que já é investido, também daria para fazer mais. Tem grandes problemas de gestão, de eficiência na alocação de recursos.

Como evitar um colapso do sistema?
O certo seria termos um bando de testes para o coronavírus, como fez a Coreia do Sul. Mas o Brasil não tem essa condição, não tem testes suficientes. Quando não tem isso, precisa ter a atenção básica muito bem organizada. É a porta de entrada do SUS e é papel dos municípios. É fundamental que os municípios tenham uma atuação coordenada. Que, na ausência de testes, tenham a atenção básica fortalecida e resolutiva. Isso significa pegar os casos que são mais leves e conseguir orientá-los bem, resolvê-los na atenção básica, para evitar internações e filas nos hospitais – que já vão acontecer. Os municípios se tornam atores protagonistas, fundamentais.

O senhor acredita que tudo isso coloca a saúde como principal tema das próximas eleições municipais?
Se tivermos eleição neste ano, e espero que tenhamos, acho que vai ser um tema central. E vai ser muito interessante para ver como as pessoas vão reagir. Há uma série de estudos que mostram como após grandes tragédias, grandes epidemias, os governos vigentes acabam sofrendo as consequências do elemento catastrófico. De novo: é importante que os prefeitos estejam com um plano para colocar de imediato nas ruas, até para sobreviver às eleições. E acho que (depois da crise) tem que ter uma discussão mais global sobre sistema de saúde. Mais do que nunca a discussão sobre global health é fundamental: precisamos garantir que todos os países tenham cobertura universal de saúde, porque, num mundo globalizado, aqueles que não têm podem afetar os que têm.


Fonte: Estadão, por Caio Sartori