Redação

O presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Cemdp), Marcos Vinícios Pereira de Carvalho, propôs nesta segunda-feira (18/11), em nome da União, que as ossadas de Perus fossem transferidas de São Paulo para Brasília. Com a mudança, a análise dos restos mortais deixaria de ser feita pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), órgão vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e passaria a ser feito pela Polícia Civil.

Baseado em estudos feitos pela Comissão, que ainda não foram apresentados, Carvalho afirma que transferir as ossadas poderia gerar uma redução de até 90% nos custos.

No entanto, para a procuradora Eugênia Gonzaga, antecessora de Carvalho à frente da Cemdp, a investigação, que tem como finalidade identificar possíveis desaparecidos políticos da ditadura militar (1964-1985), não deve ficar nas mãos de órgãos que participaram da repressão.

“Esse tipo de análise não deve estar ligada a estrutura policial nenhuma, porque estamos falando exatamente de situações em que o Estado é o agente da violência. Cada vez mais, toda a linha internacional de defesa dos direitos humanos é a de que investigações sobre graves violações sejam feitas por perícias independentes, ou pelo menos de maneira mista, e não exclusiva por órgãos ligados à polícia”, afirma.

Em 2009, Gonzaga fez parte do grupo de procuradores que ajuizou uma ação civil pública que condenou a União a fazer a análise genética dos 1.049 sacos com restos mortais. O material havia sido retirado, em 1990, de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus (SP), e guardado, em más condições, no Cemitério do Araçá.

Foi com base nessa condenação que se chegou, em 2014, a um termo de cooperação firmado entre a União e a Prefeitura de São Paulo. Na ocasião, e respeitando os pedidos dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, optou-se por transferir as ossadas para a Unifesp e criar ali o CAAF.

Segundo a procuradora, o acordo garante que a análise seja feita em parceria com a Unifesp e com a Prefeitura de São Paulo. Foi isso que garantiu a continuidade do Grupo de Trabalho Perus após o presidente Jair Bolsonaro publicar em abril um decreto que extinguiu conselhos sociais.

“Houve mudança de governos, mas os trabalhos foram mantidos graças a ação judicial. E agora deve acontecer a mesma coisa. A ação judicial deve garantir que as famílias não sofram esse baque”, conta.

Análise em risco
Para o historiador Rogério Sottili, titular da Secretaria  Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura quando o termo de cooperação com a União foi firmado, uma possível transferência das ossadas para Brasília poderia levar ao fim das análises.

“É uma evidente tentativa de atrapalhar o trabalho desempenhado pela Unifesp, não há a menor sombra de dúvidas sobre isso. Mas não é uma questão de atrapalhar por atrapalhar. A questão é que esse é um governo que não tem o menor compromisso com a verdade, muito menos com a memória e com a justiça”.

De acordo com Sottili, hoje diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, a transferência do material para uma universidade atendeu às exigências dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, que já estavam bastante desacreditados de que análises pudessem ser feitas dentro da estrutura policial.

“A grande sacada foi a de que deveríamos construir um centro de antropologia forense ligado a uma universidade que abriria espaço para uma gestão compartilhada de todo esse processo. Os familiares deram voto de confiança nisso. Além de tudo, depois de feita toda a investigação, o centro ficaria como um grande patrimônio, a formação de uma equipe especializada para trabalhar com identificação, ficaria como patrimônio. Esse foi o pulo do gato”, conta.

Familiares não foram consultados
O anúncio pegou de surpresa os familiares, que sempre foram informados sobre possíveis mudanças na Cemdp. Segundo Maria Amélia de Almeida Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, ninguém foi informado sobre a possível transferência.

“Os familiares não foram sequer consultados, sendo que os familiares têm sido informados em todas as intervenções junto aos desaparecidos políticos. É a primeira vez que isso não acontece”, afirma.

Ela também contesta a alegação de que haveria diminuição nos custos caso as pesquisas passassem para a Polícia Civil e lembra que existe um conjunto de ossadas em Brasília que foram retiradas da região do Araguaia que até hoje não foram analisadas.

“A Polícia Civil já mostrou que não tem condições de fazer esse trabalho. É um trabalho que exige ação de arqueologia e antropologia forense. Esse é o motivo da nossa preocupação. Estamos, sim, apreensivos e aguardando para que isso não seja de fato concretizado”.

Desde que as análises começaram, o Grupo de Trabalho Perus já identificou dois desaparecidos políticos. São eles, Dimas Antonio Casemiro, morto em abril de 1971 por agentes da repressão política do regime militar, e Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, assassinado no mesmo ano.

A perspectiva é que as investigações sejam encerradas em 2020, já que resta agora executar a fase final do processo, que consiste na limpeza, análise e eventual identificação das caixas em que estão misturadas ossadas de diferentes pessoas.

Com a finalização, haverá um banco de dados com amostras genéticas de todas as ossadas, o que poderá levar a novas identificações no futuro.

Fonte: ConJur, por Tiago Angelo