Por Jorge Folena –
O Dr. Ulisses Guimarães referiu-se, com razão, à Carta promulgada em 05 de outubro de 1988, como a Constituição Cidadã, aquela que veio para proteger o povo pobre e sofrido do Brasil, que vem sendo massacrado, humilhado e maltratado desde o descobrimento.
É o que se pode ver pela saga de luta permanente dos povos indígenas; dos negros de ascendência africana, sequestrados em sua terra para serem aqui escravizados por longos trezentos e cinquenta anos; do caboclo da Amazônia; do nordestino retirante e sem terra; dos tantos milhões que hoje sobrevivem, de forma insalubre e sem proteção do Poder Público, nas favelas das grandes cidades brasileiras.
Como dito por outro Pai e Guardião da Constituição Cidadã, o correto e justíssimo José Bernardo Cabral, os constituintes de 1987/1988 tiveram o cuidado de colocar na parte inicial do Texto Maior os princípios fundamentais da República e da garantia dos direitos do homem, inseridos nos artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º, em respeito ao povo brasileiro, anteriormente sempre colocado na parte final das constituições.
O povo brasileiro, como destacou o professor Darcy Ribeiro, é da luta diária pela sobrevivência, que acorda muitas vezes às três ou quatro horas da manhã para trabalhar e, com sua força, construir este grande país; mas que é desrespeitado pela elite nacional, que não reconhece o esforço desta gente negra, mestiça e pobre, que pouco ou quase nada recebe na distribuição das riquezas propiciadas pelo seu esforço e trabalho.
A Constituição redigida pelo Dr. Ulisses, Bernardo Cabral, Mário Covas, Florestan Fernandes, Beth Mendes, Benedita da Silva, e tantos outros constituintes, é aquela que veio para reparar o autoritarismo; e, mais do que isto, para dar cidadania a quem jamais a teve, aos que sempre lutaram por um pedacinho de terra para plantar e sobreviver com um mínimo de dignidade.
Ao contrário do que tentam incutir em nosso pensamento, visando acomodar e adormecer qualquer vestígio de rebeldia contra tantas injustiças, o passado do Brasil é marcado por lutas históricas do povo, cuja memória é em grande parte escondida pela elite do país, que, por meio da violência militar, massacrou populações indefesas, a exemplo do ocorrido na Guerra de Canudos (1896-1897), na Guerra do Contestado (1912-1916), no Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (1937) e, também, durante o regime autoritário de 1964-1985, em que se prosseguiu com o extermínio dos povos indígenas (iniciado desde o descobrimento), e durante o qual civis foram presos, torturados, desaparecidos e mortos.
Esse massacre continua nos dias atuais, mediante os cortes indiscriminados de direitos sociais pelas chamadas “reformas”, que, na verdade, deformam a Constituição Cidadã; e não dá trégua, em sua perseguição contínua contra a população negra, mestiça e pobre das favelas e periferias das cidades e do campo.
Ressalte-se que a Constituição de 1988 nasceu para abolir toda forma de autoritarismo e violência, representados pelas ditaduras do passado (1937-1945 e 1964-1985). Mas, infelizmente, esses males ainda se fazem presente, por conta do “passado não resolvido”, sobre o extermínio dos povos indígenas e as mazelas da escravidão.
A hipocrisia com que se busca apagar estes episódios trágicos da história brasileira se repete na indiferença demonstrada diariamente por uma sociedade apática, que não se indigna diante da crueldade dos mais de 60 mil assassinatos de jovens negros pobres, por ano; que não protesta diante da ausência de proteção do Estado, durante a grave crise sanitária da COVID-19, em que, para um governo frio e desumano, morrer um ou um milhão dá no mesmo.
Descaso e descompromisso constituem as marcas características do olhar da classe dominante (e parcela da classe média) sobre a população, que foram registrados muitas vezes pela arte, como no poema “De frente pro crime”, do saudoso Aldir Blanc, em canção eternizada na voz de João Bosco: “está lá o corpo estendido no chão”.
Temos que dar um fim a tanta indiferença! Pois está mais do que na hora de se resgatar a força originária da Constituição para retomarmos a construção do Brasil, interrompida pelo que deveria ser o “inexequível impeachment” de Dilma Rousseff, como dizia, à época, Orpheu dos Santos Salles.
É preciso destinar, efetivamente, o poder e a construção do país ao povo brasileiro, que está se defendendo como pode, e sem qualquer ajuda, dos males da pandemia e contra um governo que o ameaça, a todo momento, com repressão policial e militar.
Precisamos dizer basta para esse governo, que só concede favorecimentos para a elite parasita, que não trabalha nem permite a justa distribuição da riqueza produzida por todos, ao contrário do pretendido por Ulisses Guimarães, Bernardo Cabral e outros constituintes, que ao estabelecerem os princípios fundamentais da República, pretenderam assegurar que o povo brasileiro pudesse, enfim: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Assim, deixemos a retórica de lado e retomemos o pacto constitucional! Precisamos trabalhar para materializar o impedimento, o afastamento e a responsabilização de todos os que conspiraram e conspiram contra os interesses do povo brasileiro, devendo ser rechaçada qualquer tentativa de “acordão”, que não passa de estratégia da elite para retomar o controle, concedendo em troca proteção ao governo e “esquecimento” dos seus atos autoritários, para, finalmente, continuar o desmonte e a entrega do país.
JORGE FOLENA – Advogado, cientista político e escritor. Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro e mestre em Direito pela UFRJ. Ocupou no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) os cargos de presidente das Comissões Permanentes de Direito Constitucional e Direitos Sociais. Na Sociedade Brasileira Geografia (SBG) ocupou os cargos de diretor-secretário e presidente da comissões de publicações. Atuou na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Rio de Janeiro, como membro da Comissão de Constituição, Justiça e Legislação. Atualmente é colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre e dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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