Redação

Pesquisador sobre a classe média brasileira, o sociólogo Jessé Souza, doutor pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, considera a emergente mobilização de entregadores consequência de uma política ampla de desconstrução institucional do trabalhador.

Para ele, o pano de fundo da popularização do modelo de negócio dos aplicativos, que não pressupõe vínculo empregatício, é uma classe média que autoriza que relações trabalhistas sejam fragilizadas.

“A precarização do trabalho foi montada a partir de programas políticos”, diz ele, referindo-se aos governos de Michel Temer (MDB), que aprovou a reforma trabalhista, que ele se opõe, e do presidente Jair Bolsonaro.

“Setenta por cento da classe média votou em uma pessoa com esse perfil, você celebra a desconstrução institucional do trabalhador e aí, obviamente, ele perde vínculos, emprego e aparece na vida dessas pessoas como se elas não tivessem nenhuma relação com isso”, diz.

Para Souza, a classe média contribui para uma relação “bárbara” de consumo.

Como o sr. avalia a relação entre a classe média consumidora e os entregadores de apps, que estão no centro de uma discussão sobre trabalho na pandemia? Da forma que se dá no Brasil, perpetua uma relação de exploração próxima à escravidão. A questão é a desigualdade montada pela herança da escravidão. Não é só dizer formalmente que escravidão acabou quando você pode produzir escravos, entre aspas, num contrato de fome, com preço vil. O trabalho é reduzido a um esforço corporal —o trabalho da faxineira, da doméstica, do entregador que roda 13 horas de bicicleta para entregar a pizza quentinha. É uma relação de exploração econômica da classe média, e o fato de as pessoas serem destituídas de direito faz com que a classe média possa abusar disso.

Muitos alegam que esses aplicativos são uma forma de sustento para desempregados. Não acho. O que se cria é uma sociedade, primeiro, que desorganiza as relações de trabalho. Setenta por cento da classe média votou em uma pessoa com esse perfil, você celebra a desconstrução institucional do trabalhador e aí, obviamente, ele perde vínculos, emprego e aparece na vida dessas pessoas como se elas não tivessem nenhuma relação com isso. Basta fazer uma cadeia causal para saber que a classe média compra isso, apoia esse tipo de modelo. Você tem uma relação de classe média bárbara e selvagem.

A popularização desses apps é global. Alguns países regulam de forma diferente, mas ela também é anterior ao governo Bolsonaro… Cada país lida de forma distinta. Na Alemanha, não vejo pessoas correndo de bicicleta para entregar rápido, não é assim que funciona. Tem maquininha que carrega produtos no supermercado, o trabalho muscular é diferente. Entre nós existe uma naturalização que é exploradora e espoliativa.

Qual seria a alternativa para a classe média que evita sair de casa? Que modelo seria justo ao trabalhador? Garantindo direitos a esse trabalhador, que foram retirados 2016. A precarização de relação de trabalho tem relação com isso e isso foi montada a partir de programas políticos, tanto com Temer como com Bolsonaro. O que está por trás é uma concepção de sociedade. Setores da classe média querem que essas relações sejam fragilizadas. Esse é o ponto fundamental. De resto, vamos acabar discutindo aspectos pitorescos e fragmentados.

Alguns entregadores defendem CLT, mas a maioria quer maiores taxas e tem reivindicações pontuais. Essa mobilização pode influenciar novas manifestações? Espero que isso aconteça porque as pessoas foram jogadas nesse mercado. Não podemos colocar isso como uma escolha, há uma precarização geral que é maior que uma decisão individual. Você ainda dificulta que elas possam se organizar politicamente. Não existe debate midiático plural que pode informar essas pessoas —acho incrível que tenham conseguido se organizar coletivamente. Proteção legal é desejável, mas a classe média não se preocupa muito com o pobre.

RAIO-X

Jessé Souza, 60, foi presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2015 e 2016, durante o governo de Dilma Rousseff. É autor de uma série de livros, como “A Ralé Brasileira” (2009), “Batalhadores Brasileiros (2010) e “A Guerra contra o Brasil” (2020).


Fonte: Folha de São Paulo