Por José Carlos de Assis

O general Mourão dá palpite sobre tudo na esfera social e política. Confrontado com um presidente da República que só diz besteira, passa por erudito. E um erudito corajoso. No caso do racismo ele foi de uma extrema coragem porque, alegando que não há racismo no Brasil, se revelou contra a corrente do senso comum da maioria esmagadora dos negros, pardos e mulatos. Mas o fato é que ele foi porta-voz de uma meia verdade. O racismo no Brasil é realmente muito diferente do racismo norte-americano. Mas existe.

Quem me ensinou isso foi um amigo dileto, negro retinto, casado com uma branca simpaticíssima, a quem afirmei que não havia racismo no Brasil, sendo que o casamento dele, assim como vários amigos meus desde a infância, pretos, davam provas vivas. “Meu amigo, disse ele, vou lhe ensinar o que é racismo. Estava um dia desses conversando numa esquina com dois colegas brancos, e um guarda se aproximou. Pediu meus documentos. Mas não pediu documentos dos dois brancos. Isso, inequivocamente, é uma demonstração de racismo.”

O exemplo parece trivial, mas teve significado para mim. Os negros brasileiros não mais enfrentam, em geral, racismo radicalizado, como os norte-americanos, mas estão sujeitos a formas mais sutis de racismo. E algumas vezes explícitas. O caso do advogado Frederick Wassef, defensor da família Bolsonaro e de seus esbirros, é paradigmático. Seu ataque verbal, insultuoso, absolutamente estúpido a uma garçonete mulata num restaurante em Brasília foge a todas as classificações. Não é um racista. É um canalha.

Infelizmente, há formas de racismo que só serão superadas com o tempo. Não adiantam leis, repressão, movimentos sociais para reprimi-las no curto prazo. E isso o erudito Mourão não consegue compreender. A motorista de ônibus, no Rio, a quem foi recusado emprego por ser preta é indiscutivelmente um caso de discriminação social em razão de racismo. E aí está a chave da questão: racismo leva à discriminação, e nem sempre discriminação leva ao racismo. Discrimina-se também contra o branco pobre, e isso o erudito Mourão parece saber, mas não comenta.

No fundo racismo e discriminação provêm de conceitos estéticos, derivados dos gregos, nas artes, e dos arianos, da cor da pele. A discriminação e o racismo, nesses casos, para grande parte da população branca, está inscrita no DNA, mesmo que sejamos um povo majoritariamente negro, mulato ou pardo. É nesse sentido que a arte presta enorme serviço no combate ao racismo. Os meios de comunicação e a publicidade estão absorvendo crescentemente atrizes e atores negros, difundindo no país seus valores estéticos.

Ainda não é um processo generalizado nem de dimensão profunda. Em muitas situações a atriz ou ator mais valorizados são os que se parecem com branco. Trata-se, porém, de um começo, na medida em que a audiência e a publicidade entendam que o grande mercado de consumo, embora de renda mais baixa, está entre negros, mulatos e pardos. E é necessário, como já acontece, que artistas negros assumam abertamente sua negritude.

Outro fenômeno paralelo ocorre quando a criação artística é, ela própria, negra. Temos um exemplo histórico fantástico que é o de Machado de Assis, criador da Academia Brasileira de Letras – que, entretanto, abandonou a tradição e em geral só “imortaliza” brancos.

A discriminação pode ser objetivamente combatida mediante leis, regras sociais e punições. O racismo é mais evasivo. Muitas vezes é a expressão da intimidade da alma, não dos movimentos do corpo. Enfrentá-lo requer um alto grau de civilização que parece existir na Europa do Norte, por razões históricas, mas não nos Estados Unidos ou no Brasil, herdeiros da escravidão.

O processo para reduzi-los é cultural, de longo prazo. Começa na escola. Mas é claro que enquanto negros não tiverem dinheiro para cursar as mesmas creches e escolas de brancos, ou enquanto não houver creches e escolas gratuitos para todo o mundo, o racismo subsistirá por força da desigualdade social, não apenas por causa da cor da pele. E nisso o erudito Mourão está correto, embora eu nunca o tenha visto combater concretamente a desigualdade, preferindo, com sua erudição, seguir os caminhos socialmente perversos do neoliberalismo concentrador de renda e de riqueza.


JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.