Por Pedro Augusto Pinho –
1 – DESCONHECIMENTO GERA MEDO, ADORAÇÃO OU ANTAGONISMO
Populações primitivas, no início da vida humana no planeta Terra, adoravam o Sol, temiam e ofereciam sacrifícios aos fenômenos naturais por desconhecimento e por medo. Nos romances e filmes de ficção científica, produzidos no ocidente, quase sempre a reação dos terráqueos é hostil aos que aqui chegam do espaço, pois nossa ignorância sobre a vida fora da Terra nos coloca na defensiva; imaginamos que os extraterrestres farão conosco o que, por aqui, sempre fizemos, dominar e escravizar outros povos.
A China foi no passado, quase sempre, um mundo desconhecido, porém um povo que, antes do ocidente, descobriu a fabricação da pólvora, a siderurgia, a fabricação da seda e de porcelanas finas, visitou o ocidente antes que este fosse ao oriente. A história da China e do pensamento chinês é, ainda hoje, um buraco negro na cultura ocidental.
Essa imensa incógnita está por se constituir, hoje, no país mais rico, dominando as tecnologias mais importantes, além de ser o mais populoso, e estar se abrindo, buscando parcerias e mercados em todos os continentes. Enquanto, sempre envolvidos em guerras, os Estados Unidos da América (EUA), que se apresentam como defensores da civilização ocidental, afundam economicamente, cheios de problemas sociais, sendo superados no conhecimento científico e tecnológico pela China e por vários outros, como a antagonista, desde a guerra fria, Rússia, que já foi da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e hoje é da Federação Russa.
Logo, como Cartago para os romanos, os estadunidenses procuram incutir no ocidente, especialmente em suas colônias nas Américas, que a China deve ser destruída (“delendam esse”). E que o vírus causador da pandemia que ceifou, até meado de julho de 2021, mais de quatro milhões de vidas tem origem chinesa.
O que denominamos história ocidental começou na África, perto de 5.500 anos antes de Cristo (a.C.), quando uma população vencedora da luta pela própria existência se fixou em Buto, nos pântanos mediterrâneos do Egito.
Os han, grupo etnográfico, linguístico e cultural, amplamente majoritário no espaço ocupado pela República Popular da China (RPC), haviam trocado, conforme dados antropológicos, a coleta pela agricultura, no curso médio do rio Amarelo, por volta dos 6.700 a.C.
A dinastia Xia, misto de fabulação e de pesquisas antropológicas, governou a China desde 2.070 a.C.. E o pensamento taoísta, que é o modo de entender o mundo pelos chineses, já era registrado, em ossos e carapaças animais, em pictogramas muito próximos à grafia atual, em 1.300 a.C.
Podemos dizer que se encontra nos impérios mesopotâmicos do Oriente Médio, o mais antigo pensamento teísta do ocidente, que se fazia conhecer por volta de 2.000 a.C.
Sendo as antiguidades tão parelhas, é a evolução diferente do ocidente e do oriente que vai exibir os modos de vida, valores, crenças, que são tão nitidamente distintos entre os atuais países líderes: a China e o contexto anglo-estadunidense-sionista, que simplificaremos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), “Contexto OTAN”, pois há, além da ideologia capitalista financista, outras influências como a sionista, israelense; e seus idiomas, mandarim e inglês.
Procuremos conhece-los para eliminar o medo e os preconceitos, pela informação, pela ciência e pela razão.
Uma primeira e relevante distinção entre o ocidente e o oriente, nos é trazida pelo professor da Universidade de Paris VII, Jacques Gernet, em “Le Monde Chinois” (Librairie Armand Collin, Paris, 1972, dois volumes): a única escravatura que o mundo chinês conheceu foi a da dívida; “os camponeses sem terra são empregados nas indústrias em desenvolvimento ou fixados em novas terras que se procura valorizar”, para saldar as dívidas.
Pelos séculos IV e III a.C., sob os Reinos Guerreiros ou Reinos Combatentes, é fundado o Estado Centralizado. Constituiu um grande avanço, pois se formou um Estado com estrutura burocrática, onde até então era privativo das famílias principescas. O segundo filho, que não fazia parte do núcleo familiar, assim como sua descendência e da segunda esposa, passa a ter responsabilidade coletiva, criam-se circunscrições administrativas, novos critérios de divisão dos territórios, unificam-se pesos e medidas. São chamados “técnicos” para o governo. O príncipe não exerce propriamente o comando, o poder de árbitro, mas tem a seu encargo desenvolver, vivificar, atividades dentro do seu território, sob a forma colegiada.
No âmbito do pensamento, elaboram-se as noções fundamentais do tao (caminho) e do qi (energia vital). Porém, como assinala Anne Cheng, trava-se, além da luta pela hegemonia política, a guerra dos discursos; “numa época em que se consolida nos pensadores chineses um verdadeiro fascínio pelos problemas da linguagem” (Anne Cheng, História do Pensamento Chinês, tradução do original francês de 1997 por Gentil Avelino Titton, para a Editora Vozes, Petrópolis, 2008).
Escreve, nesta obra, Anne Cheng: “a categoria dos shi (burocratas encarregados dos negócios do Estado) começa a emergir à frente das quatro categorias do povo, e tem, como atividade especializada, o manejo do discurso, da linguagem, ao passo que as outras três – camponeses, artesãos e comerciantes – têm atividades bem determinadas e seus status sociais”.
Com a formação do Estado Centralizado, tem início o desmoronamento da hierarquia feudal e a importância crescente dos shi, fortemente marcada pelo saber, como instrumento de promoção e ascensão social.
Podemos ver na Hélade, nas cidades gregas, que ocorrem pelo século VII a.C., as primeiras formações ocidentais comparáveis aos Reinos Combatentes chineses. Mas com distinção fundamental, qual seja, a da existência de escravos. O cidadão grego, que cuidava da cidade-estado, não tinha a ocupação de produzir, nem prover sua própria existência, atribuições das mulheres e dos escravos. A isto se chamou democracia.
Democracia, que o jurista português António Manuel Hespanha (O Caleidoscópio do Direito – O Direito e a Justiça nos Dias e no Mundo de Hoje, Edições Almedina, Coimbra, 2009), disse ter sido, “no século XIX, um regime muito elitista, participado por muito poucos cidadãos”, surgindo daí outras formas de direitos, “desligados do Estado, por vezes como sobrevivência de antigas normas sociais geralmente aceites, outras vezes como produto da doutrina de uma elite de juristas que também não esquecera nem as suas doutrinas tradicionais nem o papel dirigente que ocupara na sociedade de Antigo Regime”.
O Partido Comunista Chinês, que festejou, no início de julho de 2021, seu primeiro centenário, atribui este feito raro por ser sua primeira prioridade, não aquela de seguir uma ideologia ou um estamento social ou mesmo consagrada tradição, “o revitalizar da nação, a de sempre buscar vida melhor para o povo”.
O período que a Europa denomina Idade Média, não tem o mesmo significado nem para as populações africanas nem asiáticas.
A Europeia é marcada pela queda do Império Romano do Ocidente (século V depois de Cristo) e 1453, com a conquista de Constantinopla (atual Istambul) pelos turcos (Império Otomano). Foi a época da dominação ideológica da religião surgida no Oriente Médio, que se estruturou de modo hierárquico, muito influenciado pela organização militar romana – o cristianismo. Com exceção das áreas islâmicas – Califado de Córdoba (aproximadamente a península Ibérica) e o conjunto constituído pela Hungria, România, Albânia, Bulgária, Grécia, a antiga Iugoslávia e a Criméia – a Idade Média Católica ocupou a Europa Ocidental, o Reino Unido e parte da Europa Oriental.
Nos séculos do V ao XV, a África do Norte era também dominada pelo islamismo. Mas na África subsaariana encontramos o Império Banto, as civilizações suaíli, ashanti, askias, monomotapa, entre tantas outras, com características específicas de idiomas e crenças. Antes das invasões europeias, que ocorreram após o século XV, as estruturas socioeconômicas africanas eram complexas e diferenciadas. A ideia de chefe era muito mais a de alguém que representava uma estrutura social do que alguém a ser obedecido e temido; também a casta, diferentemente da Índia, representava uma categoria profissional, casta dos ferreiros, que trabalhava com metais, ouro, armas e enfeites.
Na China, é importante o período entre os séculos I e VI, de reinado Han, quando os shi encontram-se na ambígua posição de súditos, no código político, e mestres, no código ético. O pensador Mêncio, pseudônimo de Ji Mèng Kē (370 a.C.-289 a.C.), o mais eminente seguidor do confucionismo, aprofundou a questão dos discursos, colocando ser a melhor maneira de governar o por em prática o “senso do humano”, o ren.
Com a decadência dos Han, há a ruptura das “escolas” e instalam-se crises morais e políticas que se atribuem a Lao Tse (Laozi), cuja existência é incerta. O budismo chega à China e instala-se o Império Aristocrático, com Yang e os Tang; são realizadas grandes obras públicas: rede de vias navegáveis, reconstrução de cidades, aumento das muralhas protetoras, e a administração chinesa, no século VII, atinge a maturidade. Constituem-se quatro órgãos: o Departamento de Negócios do Estado (shang shu sheng), a Chancelaria Imperial (men xia sheng), o Grande Secretariado Imperial (zhong shu sheng) e o Conselho do Estado, do qual participavam o Imperador, grandes dignitários e funcionários em funções relevantes, e os presidentes dos seis ministérios que formavam o Shang Shu Sheng. Além disso, também constituíam a gestão do Estado: o Tribunal dos Censores, a Alta Câmara de Justiça, e serviços responsáveis pela navegação, arsenais, biblioteca, guarda do Palácio etc.
Entre os séculos VIII e XI, a importância da linguagem foi se perdendo; histórias oficiais, composições rotineiras, periódicas passaram a ter caráter pessoal, uma linhagem de transmissões sem rigor científico ou preocupações morais. O texto de Laozi, a seguir transcrito, indica esta condição.
“O bom comerciante esconde bem fundo seus tesouros e faz como se os seus cofres estivessem vazios; o homem de bem transborda de virtude, mas seu rosto e sua expressão manifestam idiotia”.
A descoberta do estribo, que dá aos cavaleiros armados de arco, mais firmeza e poder de ataque, permite aos mongóis, homens das estepes, derrotarem os Jin e dominarem a China, e logo se estenderem pela Birmânia e no Vietnã.
Um dos traços característico dos mongóis, diferentemente dos han, será a discriminação das diferentes populações. Três são os grupos estabelecidos: os mongóis, os chineses (han ren) e os que nem eram uns nem outros, os semu ren. O Império Mongol, no século XIV, foi o maior império de terras contíguas da história.
Na Baixa Idade Média, as estimativas populacionais indicam que a Europa era mais populosa do que a China, com 80 milhões e 65 milhões, respectivamente, em 1400. Mas a China teria o privilégio do primeiro censo, ocorrido em 2238 a.C., por ordem do imperador Yao para conhecer, além da população, as lavouras cultivadas.
Em artigos seguintes, procuraremos tornar mais conhecida, e menos temida pela ignorância, a China e o povo chinês.
2 – DO RENASCIMENTO AOS TEMPOS MODERNOS
Como explicitamos no artigo anterior – “Desconhecimento Gera Medo, Adoração ou Antagonismo. “Contexto OTAN” e a China” – o “contexto OTAN” representa uma ideologia capitalista financeira e belicosa que envolveu, no século XX, os Estados Unidos da América (EUA), o Reino Unido, a Europa Ocidental e o sionismo israelense. De algum modo esta ideologia financeira e aguerrida já estava presente, desde o final da Idade Média, na Europa Continental e no Reino Unido (Inglaterra, País de Gales e Escócia). E recebeu a expressão midiática de “civilização ocidental cristã”, em oposição a tudo que não saísse da Europa e da religião criada por Jesus Cristo, embora incluísse o judaísmo e, a seu tempo, o Estado de Israel.
A China, no entanto, foi adjetivada como milenar e misteriosa, simplesmente por ter vivido quase sempre voltada para si mesma, e por não ter um pensamento teísta. A filosofia chinesa é formada pela materialidade da existência e pela história, onde se mesclam algumas lendas, dispensando qualquer divindade.
O domínio mongol trouxe nova rota de contato da China com o mundo islâmico, o indo-iraniano e o helenizado, até então conectados apenas pela via marítima oceânica e pela cadeia de oásis da bacia do Tarim. A contribuição mongol foi a rota das estepes que liga a Mongólia à bacia do Volga, desembocando no mar Cáspio, Europa Oriental. A bacia do Tarim é a maior bacia hidrográfica sem saída para o mar do mundo, com mais de 400.000 km² de área. Fica na região de Xin Ji Ang (Turquestão Oriental), a parte mais ocidental da China. Uma grande parte da bacia é ocupada pelo deserto de Taklamakan, onde se encontram importantes sítios arqueológicos: as Tumbas de Xiao He e os queijos mais antigos da humanidade, datados de 1.650 anos a.C.
O ingresso do budismo e a vitória mongol modificaram o modelo administrativo e, parcialmente, o pensamento chinês, no período em que a Europa já vivia a Baixa Idade Média.
Anne Cheng (História do Pensamento Chinês, Editora Vozes, Petrópolis, 2008) denomina de “aventura budista na China”, o período dos primeiros séculos da era cristã, até a assimilação, sob os Tang (século VIII), dos ensinamentos de Sidarta Gautama (560 a.C.-480 a.C.), conhecido como Buda, ou seja, o Iluminado. “O budismo vindo da Índia traz uma nova maneira de conceber a existência, revolucionando completamente as percepções chinesas”. “A existência não está limitada por um começo e um fim; é preciso imaginar uma concatenação indefinida de existência sob formas diferentes (deuses, homens, animais, seres infernais) segundo o bom ou mau carma acumulado no decurso das existências anteriores” (Anne Cheng).
A questão confuciana é sobre a natureza humana, “o cavalheiro tem vergonha de que suas palavras sejam mais ambiciosas que suas ações” (Confúcio, Os Analectos, XIV.27), enquanto a de Buda é a salvação, que está fora da condição humana. A sabedoria budista está na contemplação, para Confúcio é o aprender, um processo, um caminho (tao) que jamais pode ser finalizado.
Sob o poder mongol, séculos XIII e XIV, seus governantes posicionaram todos os mongóis no extrato superior da sociedade, conferindo-lhes isenção de impostos e direitos de propriedade.
Também se aboliu a tradição do concurso público para a seleção de chineses que comporiam o corpo burocrático do Império. A decisão de abolir os concursos teve consequências sociais a longo prazo. Jovens de famílias abastadas esforçavam-se para passar nesses exames, e ter vida cômoda na administração. Com a abolição dos concursos, estes jovens passaram a procurar outras saídas profissionais, resultando no aumento de professores e médicos, por exemplo. A supressão dos exames também teve repercussões a nível linguístico. Deixou-se de estudar os textos clássicos, e com isso declinou o conhecimento do chinês escrito, do discurso, que era, igualmente, formador do caráter.
Os dirigentes mongóis também protegeram as igrejas tibetanas, budistas, e a difusão da arquitetura de origem hindu e tibetana, que só fizeram aumentar o ódio dos chineses.
A ineficiência dos mongóis em operar a máquina administrativa, de civilização antiga e complexa, levou-os a importar turcos e persas para compor a burocracia imperial, que se tornaram a segunda classe social mais importante. Os chineses nativos, a grande maioria da população, foram lançados, assim, nas classes mais baixas.
Mas a Rota da Seda foi dinamizada, facilitando o fluxo de pessoas, o comércio e intercâmbio cultural. Rede de estradas e um sistema postal foram estabelecidos para conectar o vasto império, que tinha três vias de acesso ao ocidente. E, por razões comerciais, diplomáticas e religiosas, a China passou a receber estrangeiros, como o franciscano Giovanni del Pian del Carpine, enviado do Papa Inocêncio IV; Guillaume de Rubruck, emissário de Luís IX; os célebres mercadores venezianos Marco Polo e seus irmãos; e o marroquino Ibn Batutah que deixou notas sobre sua viagem (1325), descrevendo as máquinas hidráulicas, o papel moeda, o uso do carvão, a construção de barcos que vira na China.
Chegaram ao ocidente, durante o período mongol, conhecimentos técnicos chineses de épocas bem anteriores, enumerados: (a) pela data da invenção ou descoberta, (b) o tipo de produto ou fabricação, e (c) a época em que a Europa passa a dispor, respectivamente:
1) século II a. C. – siderurgia com emprego de foles – século XIV;
2) século V a.C. ao século X – armas de fogo, fórmula da pólvora e usos militares – séculos XIII e XIV;
3) séculos I, II e VIII – papel e xilografia – séculos XII e XIV; e
4) séculos XI e XII – fabricação de comportas fluviais – século XIV.
Como se poderia esperar, as humilhações impostas pelos mongóis e o maior conhecimento proporcionado pelas visitas de estrangeiros, levou o povo chinês à revolta, à expulsão dos mongóis e impor sua volta às estepes. Em 1368 é instituída a Dinastia Ming. Mas as doenças, a conhecida peste negra que também atingiu a Europa, bem como o início da industrialização com a saída de homens do campo, redundaram na diminuição estimada de 25 milhões de habitantes, mas que, em dois séculos, com a volta dos han ao poder, já seriam duplicados.
Apesar da xenofobia e da introspecção intelectual, característica do neoconfucionismo, a China no início da Dinastia Ming não se isolou. O comércio exterior e outros contatos com o mundo externo, em especial com o Japão, cresceram bastante. Mercadores chineses exploraram todo o Oceano Índico e atingiram a África Oriental com as viagens de Zheng He.
Zhu Yuan Zhang (1328-1398), fundador da Dinastia Ming, lançou as bases do Estado, menos interessado em comércio do que em extrair recursos do setor agrícola. Talvez devido a seu passado camponês, o sistema econômico Ming enfatizava a agricultura, ao contrário do que fizeram a Dinastia Sung e os dirigentes mongóis.
As grandes propriedades rurais foram confiscadas pelo governo, divididas e arrendadas. Proibiu-se a escravidão privada, o que fez com que os camponeses, com a posse da terra, predominassem na agricultura. Tais políticas permitiram aliviar a pobreza causada pelos regimes anteriores.
A dinastia possuía um governo central forte e complexo que unificou o império. O papel do imperador passou a ser mais autocrático, embora Zhu Yuan Zhang precisasse lançar mão dos “Grandes Secretários” para auxiliá-lo a lidar com a enorme burocracia, a qual, mais tarde, causaria o declínio da dinastia, por impedir o governo de se adaptar às mudanças sociais.
Zheng He é descrito como “embaixador” de Xuan De (1339-1435), um Ming, na Europa, em 1430 (Gavin Menzies, 1434 O ano em que uma magnífica frota chinesa velejou para a Itália e deu início ao Renascimento, tradução do original de 2008 por Ricardo Quintana para Bertrand Brasil, RJ, 2010).
Para a classe letrada, a dinastia mongol, representou um verdadeiro trauma, que durou por toda sua dominação. Mesmo após o Decreto de 1313, que declarava ortodoxas as interpretações de Zhu Xi sobre os clássicos e o restabelecimento dos concursos públicos, em 1315, a discriminação em relação aos han ainda se fazia sentir.
Zhu Xi (1130-1200), aprovado nos exames aos dezenove anos, segue a carreira burocrática com responsabilidade pelas escolas, bibliotecas e pelos ritos na província de Fu Ji An, na região sudeste, vizinha de Cantão. Após um período de fascínio pelo budismo zen, toma como mestre Li Tong (1093-1163) que o orienta no confucionismo de pensadores dos Song do Norte. Realiza a compilação de escritos e participa de um famoso encontro de debates filosóficos, em 1175, na província de Jiang Xi, com Lu Jiu Yuan (1139-1192), fundador da segunda escola neoconfucionista mais influente, a “escola da mente universal”.
Zhu Xi comentou diversos clássicos, inclusive Os Analectos e, conforme analisa Anne Cheng, confirmou a tendência de ser necessário “reencontrar a mente original de Confúcio, do qual Mêncio foi designado herdeiro e porta-voz”. “Daqui para o futuro, o mais importante já não será tanto a tradição escritural quanto as reflexões sobre a natureza humana, os fundamentos da moralidade e o lugar do homem no cosmo”.
O período dirigido pela Dinastia Ming foi dos mais prósperos para a China. Naquela época o potencial do sul da China veio a ser totalmente explorado. E neste período Ming deu-se a última ampliação da Grande Muralha da China.
Em 1635, os mandchus, minoria étnica descendentes dos tunguzes, habitando territórios do norte e nordeste da China, tomam o poder. Embora fossem conquistadores estrangeiros, adotaram as tradicionais regras de governo confucianista e governaram na mesma linha das dinastias nativas anteriores. Ao longo do meio século seguinte, dominaram completamente o território antes pertencente aos Ming e conquistaram o Tibete, a Mongólia e o Xin Ji Ang. Este último abrigava minorias étnicas, como os uigures-turcos, e era parte da antiga rota comercial, “rota da seda”, que ligava a China ao Oriente Médio.
O governo mandchu Qing interferiu muito na economia. O monopólio do sal foi restaurado e se tornou uma das maiores fontes de receita para o Estado. Os funcionários da Dinastia Qing procuraram incentivar a cultura de cereais. Desconfiados do poder dos comerciantes ricos, os governantes Qing limitavam suas licenças comerciais e geralmente lhes recusavam permissão para abrir novas minas, exceto em áreas pobres. As corporações mercantis proliferaram em todas as cidades chinesas em crescimento e frequentemente adquiriram grande influência social e até mesmo política. Mercadores ricos com conexões oficiais construíram enormes fortunas e patrocinaram a literatura, o teatro e as artes. Produção de tecidos e artesanatos cresceram. No final do século XVIII, a China dominava mais de um terço da população mundial, talvez possuísse a maior economia do mundo e, por área, era dos maiores impérios de todos os tempos.
Após a morte do quinto imperador mandchu, Qi An Long (1711-1799), a economia chinesa começou a declinar e a sociedade civil enriquecida e indolente, importadora de ópio, se deixa corromper, entregando a empresas estrangeiras (East India Company, inglesa, como exemplo) o monopólio comercial para produtos manufaturados, como os têxteis, e a própria gestão de parcela de seus territórios.
Enquanto a Europa se revigora com as revoluções industriais e libertárias e, sob Napoleão, desenvolve novo ordenamento jurídico, a China, abrindo-se para o exterior, abandonando sua filosofia e o consumo dos bens que produz, entra em declínio que durará mais de um século.
No próximo artigo veremos como a China atravessou o desenvolvimento industrial e a vitória das finanças ocidentais a partir do século XIX.
3 – DO CONGRESSO DE VIENA AO INÍCIO DO SÉCULO XX
O Congresso de Viena foi uma festa, onde nem faltou a música de Beethoven (Cantata Opus 136), e também uma conferência entre embaixadores, personalidades das grandes potências europeias, na capital austríaca, entre setembro de 1814 e junho de 1815. A explícita intenção era redesenhar o mapa político do continente europeu, após a derrota da França napoleônica, e restaurar os tronos das famílias reais derrotadas por Napoleão (como a dos Bourbons). Mas foi um golpe de mestre da Inglaterra para limitar as ambições europeias a disputas continentais e deixando-lhe o mundo para formar o “império onde o Sol nunca se punha”.
Como estava a Europa à época do Congresso de Viena? Conforme o Atlas Histórico Escolar (Manoel Maurício de Albuquerque, Arthur Cézar Ferreira Reis, Carlos Delgado de Carvalho e Therezinha de Castro, MEC-FENAME, RJ, 1983, 8ª edição revista e atualizada), a encontramos com 17 unidades estatais distintas, assim computando a Confederação Germânica e a porção europeia do Império Otomano. Mas com enorme potencial de disputas, pois a Rússia ocupava a Finlândia e parte da Polônia, a Alemanha e a Itália ainda não estavam unificadas, Noruega e Suécia eram um único estado e por aí vai.
Vê-se, portanto, o oportunismo da “pérfida Albion”, em meio de figuras notáveis da política da época: o anfitrião, Imperador Francisco I, o austríaco Príncipe Klemens Wenzel von Metternich e o Barão Wessenberg; três Ministros Plenipotenciários portuguesas: D. Pedro de Sousa Holstein, Conde de Palmela, António de Saldanha da Gama, e D. Joaquim Lobo da Silveira; a Prússia representada pelo príncipe Karl August von Hardenberg e seu Chanceler, o acadêmico Wilhelm von Humboldt; a Rússia, pelo seu Imperador Alexandre I e a França, por Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord. O Reino Unido foi inicialmente representado pelo seu Secretário dos Negócios Estrangeiros, o Visconde de Castlereagh, após fevereiro de 1815 por Arthur Wellesley, Duque de Wellington, e nas últimas semanas pelo Conde de Clancarty.
Vejamos as Américas, nesta época. A América do Sul encontrava-se em processo de independência dos colonizadores europeus. O Brasil, colônia portuguesa, abrigava desde 1808 a Corte Lusitana. Nas colônias espanholas – Gran Colombia, Peru, Chile e Províncias Unidas do Prata – o Paraguai, em 1814, desligara-se desta última, a qual ficaria efetivamente independente em 09/07/1816. O Chile conquistaria a independência em 1817 e o Peru em 1821. O antigo Alto Peru, que deu origem à Bolívia, empreendia, desde 1809, sua luta para fixação como território autônomo que só concluirá no século XX. A Gran Colombia recebeu ajuda indireta da França Napoleônica, que ocupava desde 1802 a Espanha, mas os Estados Nacionais da Colômbia, Venezuela e Equador só se constituiriam em 1830. Havia as três Guianas, subordinadas à Holanda, França e Inglaterra, e as Ilhas Malvinas (Falkland), ainda hoje britânicas.
Na América Central, o Haiti foi o primeiro a se tornar independente, no ano novo de 1804, graças à determinação, capacidade e coragem de François Toussaint Breda, neto de chefe africano, que derrotou franceses e aliados, e adotou o nome “Toussaint L’Ouverture”.
Na parte continental, as independências têm início em 1838, com as de Honduras, Costa Rica e Nicarágua, e continuaram até 1921, quando o Panamá se separa da Colômbia, que recebe US$ 25 milhões e um pedido de desculpas formal do Congresso estadunidense pela intervenção no conflito Panamá-Colômbia. Os Estados Unidos da América (EUA) assumiram, com o fracasso da França, o projeto de construção do Canal do Panamá em 1904 e levaram uma década para o concluir, inaugurando oficialmente em 15 de agosto de 1914.
O México se torna independente em 1821, seis anos após o Congresso de Viena e os EUA, em 1815, só existiam em 18 dos 50 estados e, por compras, guerras e extermínio das populações originárias, só estarão totalmente incorporados em 1959, com a compra do Alasca e a anexação do Havaí.
A África foi um campo de batalha, desde o século XV, onde os reinos e impérios europeus se apossavam dos territórios, exterminavam etnias e idiomas, escravizavam os povos e exerciam as diversas formas de pilhagem dos recursos naturais e das economias locais. Apenas a Abissínia escapou desta sina. Os abexins reinaram desde 1270 até finais do século XX. Durante esta época, o império conquistou e incorporou todos os povos da Etiópia e Eritreia, repeliu, com sucesso, os exércitos árabes e turcos e estabeleceu contatos produtivos com alguns países europeus.
Os donos das maiores porções africanas eram os ingleses e os franceses. Mas também se fizeram presentes Portugal e Espanha, Alemanha, Itália e Bélgica.
A China do século XIX testemunhou o enfraquecimento do governo Qing (1644-1911), em meio a conflitos sociais, estagnação econômica e às ingerências ocidentais.
O interesse britânico era continuar o comércio de ópio que colidiu com éditos imperiais que baniam aquela droga viciante, Em 1840 trava-se a Primeira Guerra do Ópio. O Reino Unido e outras potências ocidentais, inclusive os EUA, ocupam “concessões” pela força, que também lhes concede privilégios comerciais. As importações de ópio, que por volta de 1815 eram de menos de quatro mil caixas, em 1868 foram elevadas para 68 mil, em crescente aumento de quantidade.
Hong Kong foi cedida aos britânicos em 1842 pelo Tratado de Nanquim. Também ocorreram naquele século a Rebelião Tai Ping (1851–1864) e o Levante dos Boxers (1899–1901). Em muitos aspectos, as rebeliões e os tratados que os Qing foram obrigados a assinar com as potências imperialistas, são reflexo da incapacidade do governo chinês em reagir adequadamente aos desafios que enfrentava a China no século XIX. Como exemplo da estagnação tecnológica, a China, país inventor da pólvora, ainda usava armas de fecho de mecha, enquanto os europeus já haviam abandonado esta tecnologia em favor da pederneira e começavam a utilizar a tecnologia do mecanismo de percussão, com o advento dos cartuchos.
A ação do Ocidente na China é apresentada pelo “contexto OTAN” como positiva, pois levou aquele País a “se abrir para o mundo”. Mas o primeiro tiro das canhoneiras britânicas no rio das Pérolas marcou igualmente a necessidade de mudança, como o Ocidente não esperava. E, na competente e consistente análise do professor Jacques Gernet, da Universidade de Paris VII, em “Le Monde Chinois” (Librairie Armand Collin, Paris, 1972): “seria menosprezar a solidariedade das civilizações ignorar o papel mundial da China, as suas relações com a Ásia Central, o Irã, a Índia, o mundo islâmico, o sudeste asiático, o vai e vem das mercadorias, das técnicas, das religiões que nunca cessou e sem os quais a própria história do ocidente seria incompreensível”.
Na virada dos séculos XVIII para o XIX, começa a surgir entre os intelectuais chineses a corrente que pretende devolver aos clássicos do pensamento seu valor de portadores de verdades atemporais. Salientam-se os “Anais das Primaveras e Outonos”, que estiveram em destaque no período Han, pelo duplo aspecto de estatuto de clássicos e de congregar a história, o pensamento canônico e o engajamento político. Embora identificado como “estudos han”, há neste movimento o espírito reformista e de renovação dos textos, onde se destacam Gong Zi Zhen (1792-1841) e Wei Yu Án (1794-1856).
Surge uma ligação entre os ritos e as leis, e desta combinação do classicismo de Confúcio e da prática legislativa surge a compreensão de que os remédios tradicionais já não solucionam os graves problemas da corrupção, do aumento populacional, das drogas (ópio) e das rebeliões e invasões estrangeiras.
De Wei Yu Án temos a seguinte reflexão:
“Desde os tempos mais remotos, antes das Três Dinastias (Xia, Shang e Zhou), o Céu nunca foi o mesmo que o de hoje, a Terra nunca foi a mesma que a de hoje, os homens nunca foram os mesmos que os de hoje, e até as coisas nunca foram as de hoje. Ora, é evidente que o (sistema dos) campos em forma de tabuleiro, a estrutura feudal, o modo de recrutamento das Três Dinastias não podem ser ressuscitados. Tudo isso só serve para levar os espíritos pragmáticos a criticar os métodos confucianos por sua ineficácia. Um homem de bem que resolve estabelecer a ordem sem se conformar com o espírito reinante antes das Três Dinastias expõe-se a ser acusado de vulgaridade, mas, por não reconhecer a evolução das condições, desde as Três Dinastias, fica-se exposto a cair na ineficácia”.
A Dinastia Xia tem parte mítica em sua história, mas estima-se que as Três Dinastias governaram entre 1900 a.C e 256 a.C.
Igualmente importante foi a contribuição de Kang You Wei (1858-1927), principalmente para salvar a nação de uma alienação total, ao final do século XIX. A seguinte sequência, apenas em 1898, mostra como o território foi sendo transferido para o controle estrangeiro, quase sempre abrigava um porto, a baia e o território em seu entorno: Port Arthur e Li Ao Dong, à Rússia; Wei Hi Wei e Xow Lo On à Grã-Bretanha; Guang Zhou Wan, à França; Ji Ao Zhou à Alemanha.
Kang é confrontado com o desafio de ocidente que busca centralizar em Confúcio o que Buda, Cristo e Maomé representavam para o pensamento e escreve: “nascido numa época de desordem, Confúcio partiu disto para estabelecer o modelo das Três Eras, concentrando-se na da Grande Paz. Depois tomou como ponto de partida sua terra natal para determinar o conteúdo das Três Eras, fixando-se na Grande Unidade na qual virão fundir-se todos os seres da vasta terra, dos mais longínquos aos mais próximos, dos maiores aos menores”.
Tan Si Tong (1865-1898) reinterpreta a virtude da humanidade, em Confúcio, como força dinamizante do universo e fiadora da igualdade fundamental entre os seres humanos. “Para mim, é o conhecimento e não a ação que tem mais valor; pois o conhecimento é coisa da alma, a ação é coisa do corpo”.
No século XX, os ideais universais do humanismo são desafiados pelos valores ocidentais e suas práticas egoístas. Assim os rituais, a família, a hierarquia confucianos provocam uma reviravolta que está expressa no texto de Chen Du Xiu (1880-1942), a seguir transcrito, como as demais citações destas considerações sobre filosofia, da História do Pensamento Chinês, de Anne Cheng:
“Em nossa juventude estávamos ocupados em estudar a composição em oito partes e a discutir sobre o saber antigo. Muitas vezes não tínhamos senão desprezo pelos letrados que aprendiam línguas europeias e discutiam sobre o novo saber: todos eram escravos dos ocidentais, indignos de nossa tradição. Foi somente ao ler os escritos de Kang You Wei e de seu discípulo Liang Qi Chao que começamos a adquirir consciência de que os princípios políticos, a religião e o saber estrangeiro podiam trazer-nos uma grande contribuição e abrir-nos os olhos, a ponto de nos fazer rejeitar o passado para abraçar o presente. Se nossa geração possui hoje alguns conhecimentos do mundo, nós o devemos inteiramente a Kang e Liang”.
A China que chega às grandes guerras do século XX nem era uma pálida imagem dos Han, dos Ming e mesmo dos invasores mongóis e mandchus. Em 1900 tropas coloniais das “nações aliadas” pilham Pequim e o Palácio Imperial, o general prussiano Alfred von Waldersee, comandante das forças repressoras à rebelião dos Boxers, realiza expedições punitivas a numerosas cidades do norte da China. Em 1901 e 1902, Chung King e Tian Jin são entregues aos japoneses, belgas, italianos e austríacos. A Mongólia Exterior passa ao controle russo em 1911 e o Tibete ao controle britânico em 1914.
No belicoso século XX novas e profundas mudanças ocorrem na China e delas trataremos nos artigos seguintes.
4 – NACIONALISMOS, GLOBALISMO, IMPERIALISMO
A vitória inglesa no Congresso de Viena representou mais do que um poder nacional. Aliás, em se tratando das ilhas britânicas, o poder vem sendo dos Stuart desde o século XV, associados, a partir do século XVIII, pelo judeu Mayer Amschel Rothschild e descendentes, um poder fundiário e comercial financeiro que é, ainda hoje, a expressão inglesa. A resposta a um poder que extravasa as fronteiras dos Estados só pode ser o nacionalismo, explicitamente enunciado pelo megaespeculador George Soros como o maior inimigo do neoliberalismo mundial.
A resposta ocorreu nos trinta e nove estados e cidades livres de idioma alemão os quais criaram, sob o pensamento do economista Friedrich List (1789-1846), em 1º de janeiro de 1834, a aliança aduaneira que teve como meta a liberdade alfandegária – Zollverein – base da rápida e significativa industrialização alemã e criação do Império Alemão, em 18 de janeiro de 1871.
Também a resposta veio na Itália, onde a administração napoleônica incentivou um nacionalismo na península que desencadeou, entre 1815 e 1870, o movimento denominado Risorgimento. A luta se trava em duas fases: a primeira, em 1848-1849, constituiu-se de vários movimentos revolucionários e da guerra nacionalista contra o Império Austríaco, mas sem mudanças nos estados, ducados, reinos existentes. A segunda fase, em 1859-1860, foi do próprio processo de unificação e terminou com a declaração do Reino de Itália e a anexação de Roma, antes a capital dos Estados Pontifícios, em 20 de setembro de 1870.
Assim, enquanto florescia um movimento nacionalista na Europa, a China se desfazia, sob o governo Qing, permitindo que os estrangeiros, estados e empresas, usurpassem seu patrimônio e território; uma privatização ampla e geral.
A partir de 1874, o Japão se une às potências ocidentais no desmembramento da China, anexando as ilhas Ryû Kyû (Ilhas Léquias, em português). Os capitais ocidentais impedem, com dívidas e pressões, que haja recursos para os chineses recuperarem sua economia, territórios e rearmarem as forças militares.
Como se não bastassem as agressões estrangeiras, ocorre entre 1851 e 1864 a Revolução Tai Ping. Conflito sangrento entre as forças imperiais e o grupo inspirado pelo místico, Hong Xiu Quan (1814-1864), que se intitulava irmão de Jesus Cristo. Seu objetivo era criar uma nova cultura, substituindo o confucionismo e o budismo por uma visão de cristianismo.
As tropas imperiais foram auxiliadas por forças britânicas e mercenárias estadunidenses que esmagaram a revolta, reconquistando Nanquim, onde pereceu Hong Xiu Quan. A Dinastia Qing, no entanto, jamais se restabeleceu desta guerra, civil e ideológica, dos Tai Ping (misto de cristianismo e igualdade social) que chegou a influenciar outros grupos revolucionários, inclusive o Partido Comunista Chinês. Calcula-se que morreram entre 20 e 30 milhões de pessoas, em consequência direta do conflito.
Transcrevemos a análise do professor Jean Chesneaux, diretor da École des Hautes Études em Sciences Sociales da Universidade de Paris: “A própria amplitude dos sucessos militares e diplomáticos dos ocidentais constitui na China, implicitamente, uma espécie de vacuum político. Abriu caminho simultaneamente aos Tai Ping, aos Ni An (sociedade secreta que atingiu seis províncias do norte entre 1851 e 1868) e aos muçulmanos, ainda que esses movimentos sejam a expressão histórica de problemas distintos e produto de uma evolução particular”.
“As Potências e os grupos comerciais que elas sustentam não têm interesse em que esse vacuum se perpetue. Necessitam na China de um ponto de apoio político, de um Estado que, bem ou mal, garanta as vantagens que elas adquiriram e cumpra os acordos assinados. Por isso, vão dar mão forte a esse mesmo governo mandchu que antes enfrentavam. Desde a assinatura dos tratados de 1860, a ajuda militar e técnica franco-inglesa é decisiva. Permite às forças imperiais recuperar a situação e derrotar os Tai Ping, a partir de 1864, e depois os Ni An e os muçulmanos” (J. Chesneaux, A Ásia Oriental nos Séculos XIX e XX, tradução do original de 1966 por Antonio Rangel Bandeira para a Livraria Pioneira Editora, SP, 1976).
A I Grande Guerra, que historiadores chineses denominam guerra civil europeia, é fruto do Congresso de Viena e da ardilosidade inglesa. Com cerca de meia centena de territórios autônomos era altamente previsível que disputassem o poder continental europeu, deixando assim o Reino Unido livre para conquistar o mundo fora da Europa. Mas os movimentos nacionalistas e as unificações fizeram com que, aproximadamente um século depois, novos competidores entrassem no butim, na pilhagem da África e da Ásia, especialmente. A I Grande Guerra é fruto desta situação, porém já encontrava a Inglaterra em declínio e sua antiga colônia na América do Norte, os Estados Unidos da América (EUA) em ascensão. E tem início outra disputa que envolverá países e ideologias diferentes: o financismo fundiário e comercial, de um lado, e o industrialismo, de outro.
A grande mudança no cenário europeu do começo do século XX deu-se no Império Russo. No século XV, aproveitado a fragmentação do Império Mongol (1209-1368), que vimos dominando a China e se estendeu por 24 milhões de quilômetros quadrados até a Europa Oriental, Ivan III (1440-1505), o Grande, deu início à cooptação dos potentados eurasiáticos, que então se formaram na imensa área territorial do Império Russo. Sob os governantes até o século XX, foram incluídos inclusive povos seminômades da Ásia Central, com a inteligência de lhes conceder títulos e assento na corte russa sem interferir com as leis locais e costumes e tradições culturais destes povos.
Com a Revolução na Rússia, em 25 de outubro de 1917, assume o poder Vladimir Ilyich Ulianov (1870-1924), Lenin, que acomodou o princípio da autodeterminação dos povos com a política de nacionalidades que, de algum modo existia desde meados do século XV, quando a Rússia deixou de ser uma nação bastante homogênea etnicamente, para se tornar um império multinacional, com as diversas etnias nele abrigadas.
Vê-se que a questão nacional vai tomando diferentes contornos que explodem na II Grande Guerra (1º de setembro de 1939 a 2 de setembro de 1945). Esta guerra foi muito diferente do que se poderia esperar. Uma possível causa seria da predominância industrial sobre a financeira na disputa pelo poder mundial, outra a das nacionalidades contra as globalizações imperiais ou ideológicas, outra ainda por nova divisão do mundo entre as potências emergentes, mas nada disto foi o estopim da guerra que, na verdade, uniu poderes e interesses contrários sob a mesma bandeira (financismo, industrialismo, nacionalismo, globalismo, capitalismo e socialismo).
O Eixo, o outro lado da II Grande Guerra, nasceu dos esforços diplomáticos da Alemanha, da Itália e do Japão para assegurar os seus interesses expansionistas específicos, em meados da década de 1930.
O Império do Japão incluía também a Mandchúria (região leste da Ásia, que dominara toda a China entre o século XVII e 1911), a Mongólia Interior (norte da China, onde se encontram estepes verdes, deserto árido e partes da Grande Muralha da China), a maior parte das áreas costeiras orientais da China, a Malásia, a Indochina Francesa, as Índias Orientais Neerlandesas, Filipinas, Birmânia (hoje Myanmar), algumas regiões da Índia (Estado de Manipur) e várias ilhas do Oceano Pacífico (Ilhas Marianas).
Entre 7 de julho de 1937 e 2 de setembro de 1945, ocorreu a Segunda Guerra Sino-Japonesa, conhecida pelos chineses como Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa. A guerra foi o resultado da política imperialista japonesa não apenas para expandir sua influência política e militar, mas para garantir o acesso às reservas de matérias-primas, de alimentos e emprego para os nipônicos.
Vimos que a China chegou ao século XX um país ocupado e em decadência. As ideias de Kang You Wei (1858-1927), trazendo contribuições ocidentais dos socialistas utópicos – Saint-Simon (1760-1825); Fourier (1772-1837); Louis Blanc (1811-1882) e Robert Owen (1771-1858) – e do positivismo de Augusto Comte (1798-1857) atuaram de modo tão confuso que estimulou uma reforma no confucionismo e uma reação ortodoxa no pensamento chinês.
Os intelectuais de inspiração confuciana questionavam os ensinamentos e os desafios trazidos pelos ocidentais. Zang Bing Lin (1869-1936) e Liu Shi Pei (1884-1919), figuras de proa do pensamento na aurora do século XX, acreditavam na perenidade do pensamento dos Song e dos Ming. Zang Bing Lin embora inovador em muitos aspectos, era cético em relação a novas descobertas arqueológicas. Ativista e acadêmico, produziu muitas obras políticas, foi preso por três anos no Império Qing e também colocado em prisão domiciliar, por mais três anos, por Yuan Shi Kai (1859-1916), importante general e político chinês, que foi o primeiro Presidente da República da China (1912 a 1915). E Liu Shi Pei, nacionalista fervoroso, viu nas doutrinas do anarquismo um caminho para a revolução social, ao mesmo tempo em que preservava a essência cultural da China, especialmente o taoísmo e os registros da história pré-imperial da China. Em 1916, ele ingressou no corpo docente da Universidade de Pequim.
Um movimento militar (Levante Wu Chang), em 10 de outubro de 1911, em Wu Han, capital da província de Hu Bei, levou à formação do governo provisório da República da China, em Nanquim, em 12 de março de 1912, derrubando a Dinastia Qing. Sun Yat Sen (1866-1925), médico e político, foi o primeiro a assumir a presidência, mas viu-se forçado a entregar o poder a Yuan Shi Kai, que comandava o Novo Exército (tropas chinesas treinadas e equipadas à maneira ocidental) e fora primeiro-ministro durante a Era Qing. Yuan Shi Kai nomeou-se Imperador e, nesta condição, dirigiu a China de 22 de março a 6 de junho de 1916, deixando um vácuo de poder, o governo republicano em frangalhos, e o País administrado por coligações variáveis de chefes militares provinciais.
Sun Yat Sen deixou, no entanto, uma política que teve seguidores e foi denominada como dos Três Princípios do Povo: nacionalismo, democracia e meio de vida das pessoas. Após a morte de Yuan Shi Kai, em 1917, voltou à China, estabelecendo-se em Guang Zhou, às margens do rio das Pérolas, onde foi nomeado presidente do autoproclamado Governo Nacional. Ali fundou a Academia Militar de Huang Pu, distrito de Guang Zhou, dirigida por Chiang Kai Shek (1887-1975), e tentou formar um exército para conquistar o norte da China. Organizou o Kuomintang como um partido de estilo leninista, mesmo não sendo comunista, que lhe valeu o apoio do Komintern (a Terceira Internacional reunindo os partidos comunistas de diferentes países), e lhe proporcionou a primeira Frente Unida, dos Nacionalistas do Guó Min Dang (literalmente “Partido Nacionalista Chinês”) que dominou o governo da República de 1928 até 1949) com o recém-criado Partido Comunista Chinês.
Em 1919, ocorre o Movimento de Quatro de Maio, com os intelectuais manifestando o descrédito na filosofia liberal ocidental, trazida por Kang You Wei, que resultaria no conflito ideológico entre os socialistas progressistas e os conservadores, dentro e fora do Partido Nacionalista Chinês.
PEDRO AUGUSTO PINHO é presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET), avô e administrador aposentado.
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