Por Wander Lourenço

Prezado Sr. Pedro Paulo de Oliveira, este que lhe escreve vem a ser apenas um dos milhões e milhões de torcedores convictos e apaixonados (por sinal, às margens do masoquismo) do Clube de Regatas Vasco da Gama, distribuídos por “Norte-Sul deste país”, em cuja história se registra um legado de lutas, glórias e conquistas, pelo qual muito nos orgulhamos, nós, adeptos como se diria em Portugal, nação europeia que nos concedeu a honra de utilizarmos a denominação do grande marinheiro lusitano, no período das Grandes Navegações ibéricas (“Tu tens o nome do heróico português / Vasco da Gama, tua fama assim se fez”), conforme decantou o mestre Lamartine Babo, na letra do Hino desta associação luso-brasileira. Neste contexto, cabe rememorar que um dos pilares que traduz o espírito cruzmaltino vem a ser o combate contra o racismo (hoje se diz estrutural) e pela resistência contra a injustiça social de qualquer natureza, provinda do opressor que, se patrocinou o Império, por que não se infiltraria nas agremiações esportivas desta pátria de chuteiras.

No dia 7 de abril de 1924 o Vasco escrevia uma das mais importantes páginas do futebol brasileiro ao negar fazer parte da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA) quando esta exigiu que o clube afastasse do elenco os jogadores Negros. (Divulgação)

Logo, nós somos Vascaínos com muito orgulho (e letra maiúscula, por favor), apesar das chacotas e zombarias dos adversários, que não se cansam de nos lembrar dos quatro rebaixamentos neste malfadado século XXI; e, sobretudo, dos incontáveis vice-campeonatos que, entretanto, confesso, hoje, estes quase títulos nos deixam até um pouco saudosistas de um tempo em que sofríamos, mas que disputávamos torneios internacionais (Quem não se recorda da bendita e fatídica Fla-Madri, por exemplo?), nacionais e regionais. Perdoe-me, senhor presidente Pedrinho, por ter me alongado no preâmbulo desta missiva; porém, tal prolixidade no parágrafo introdutório se deu em razão da necessidade de ressalvar alguns aspectos dos costumes e das tradições, que nos diferenciam dos nossos adversários que nos respeitam e nos admiram por termos travado tantas batalhas dentro e fora dos campos de futebol.

Por estas e outras razões informo-lhe que estes manuscritos têm por finalidade acentuar os episódios de certa relevância política que, decerto, os obrigam a ter a máxima cautela possível na condução do leme desta nau luso-brasileira, que trafega por mares nunca antes navegados por Vossa Mercê e sua diretoria (Salve, Maestro Felipe!…), neste percurso épico e atlântico. Por esta percepção, quiçá seja de bom alvitre mencionar que o capitão-mor e sua tripulação devem primar pela valorização do passado histórico deste clube de regatas e futebol, que nos faz cantar de coração desde os primórdios de sua fundação, o que simbolizou um traço de união Brasil-Portugal. Com toda sinceridade, creio eu que o senhor pode vir a ser o maior presidente do Vasco da Gama na era pós-Calçada; não obstante, é de suma importância que se atente para algumas questões simbólicas, que em outras agremiações não causariam impacto em seus respectivos Estatutos; mas que, absolutamente, não há de ser o caso de nossa entidade sócio-poliesportiva, fundada em 21 de agosto de 1898, no município do Rio de Janeiro, aproximadamente uma década após a Abolição da Escravatura.

Getúlio Vargas teve em Sao Januário um dos principais palcos de sua ligação com os trabalhadores do Brasil. (Arquivo Nacional)

Por esta perspectiva, observa-se que a inspiração para o pontapé inicial para a ascensão e notoriedade de sua identidade se deu no ápice das comemorações pelo quarto centenário da descoberta do Caminho das Índias (1498), temática esta que também moveu o bardo Luís de Camões a escrever a clássica epopeia Os Lusíadas, homenageando-se em ambos os casos o navegador português Vasco da Gama. Nisto, enfatiza-se que nós só alcançaríamos o primeiro título de relevância em 1923; ou seja, exatos 50 anos após a sua criação, o Clube de Regatas Vasco da Gama conquistará o Campeonato Carioca de Football, com os imbatíveis (e inolvidáveis) Camisas Negras, alcunha dada em razão de grande parte do plantel vir a ser composta por pretos, mestiços e operários de origem afro-brasileira; diga-se de passagem, assim como ocorreu com o Bangu Futebol Clube. Desde então, iniciou-se a saga antirracista desta associação gloriosa que se reforça com a negativa de dispensa de doze atletas negros após determinação da Liga Carioca de Futebol. Nesta jornada heroica, nós levaríamos, ainda, mais vinte e cinco anos aproximadamente, para a formação do Expresso da Vitória, liderado pelo ídolo eterno Ademir de Menezes, o Queixada.

Queixada foi o maior ídolo do Vasco da Gama até o surgimento de Roberto Dinamite. Liderando o memorável “Expresso da Vitória”, realizou 301 gols com a camisa cruzmaltina, e foi por décadas o maior artilheiro do clube. (Divulgação)

Tudo isto nos serve como ilustração para refletirmos a respeito da responsabilidade de se construir parcerias que, a princípio, podem nos parecer benéficas; no entanto, se olharmos com atenção depõem contra a História vascaína, uma vez que irão de encontro ao cerne da filosofia de resistência adotada pelo clube.

Carlos Roberto de Oliveira (Duque de Caxias, 13 de abril de 1954 – Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 2023), mais conhecido como Roberto Dinamite, foi um futebolistaf brasileiro que atuou como centroavante. Considerado o maior ídolo da história do Vasco da Gama, fez história no clube cruzmaltino durante as décadas de 70, 80 e 90, encerrando a carreira no mesmo time. Também foi presidente do clube entre 2008 e 2014. Chegou a atuar na política, sendo eleito deputado estadual do Rio de Janeiro pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) por cinco mandatos consecutivos. (Wikipédia)

Explico-me: Quando houve a sua aproximação com o proprietário da Crefisa, José Roberto Lamacchia, Senhor Presidente, com o nítido intuito de substituição ao péssimo negócio da SAF do Vasco da Gama com a norte-americana 777 Partners, o que poderia ser o salvador da nau vascaína, contudo, poderia ser um retrocesso em nossa missão de resistência e combate ao processo escravocrata. Levando-se em consideração que a agiotagem institucionalizada se equivale ao ofício dos antigos mercadores escravagistas, que traficavam e comercializavam almas humanas, nós não estaríamos traindo e maculando o passado de luta e resistência contra a escravidão? Isto porque ao nos associarmos aos banqueiros contemporâneos nós estaríamos cedendo a uma fórmula mais sofisticada de exploração do indivíduo, do mesmo modo que se fazia no período colonial e pós-colonial, sem necessidade de cuidar da sobrevivência (leia-se: alimentação, saúde, moradia, vestuário etc.), substituindo-se a mercadoria negra pelos escravizados do capitalismo, extorquidos pela barbárie dos juros altíssimos que nos aniquilam ao estilo do açoite e da senzala.

Por fim, meu nobre presidente Pedrinho, em nossa bandeira não cabe nos aliarmos aos senhores de engenho contemporâneos, partidários da chibata da aplicação dos juros, substitutos do pelourinho, das correntes de ferro, das máscaras de flanders etc., que, hodiernamente, aprisonam e subjugam seres humanos em situação de precariedade econômica. Destarte, como nos submeteríamos ao poder financeiro destes escravagistas pós-modernos, detentores da lucratividade extorsiva e escravocrata, quando o histórico do Clube de Regatas Vasco da Gama clama – e sempre clamará –, por igualdade, liberdade e justiça social!?!… Nesta mesma linha de passe, preste atenção também ao pirata navegador Evangelos Euricus Marinakis…

P.S. Atenção e todo cuidado também que o mesmo se daria com a redenção às casas de apostas, que são os banqueiros do jogo de bicho coevos, com o poder potencializado por patrocínio em torneios, estádios, uniformes e afins. Porém, este será assunto para a próxima crônica.

WANDER LOURENÇO é professor, cineasta, poeta, letrista e escritor. PhD em Literatura Comparada pela Universidade Clássica de Lisboa; pela PUC-GO; e pela UFMG. Doutor, mestre e especialista em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense. Produtor e diretor do documentários “Carlos Nejar, o Dom Quixote dos Pampas (2015); “Nélida Piñon, a Dama de Pétalas” (2017); e o “Cravo e a lapela: biografia de Ricardo Cravo Albin” (2021). Livros recentes: Escrevinhaturas – Poesia / Editora Elefante-SP (2022); e A República do Cruzeiro do Sul – Romance histórico / Editora Almedina (2023).

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