Por Ricardo Cravo Albin

Os 75 anos de minha querida Maria Bethânia representam uma data de coração e pulsação de todos seus fãs e amigos.

Jamais me esquecerei de apresentá-la no teatro da Academia Brasileira de Letras quando ela comoveu os acadêmicos com recital inesquecível sobre a grandeza da poesia na língua portuguesa em canções alojadas no coração do Brasil. Outro momento emocionante ocorreria ao receber seu convite para desfilar no carro “Amigos de Bethânia”, liderado por Caetano Veloso, no desfile campeoníssimo da Mangueira em 2016, A Menina dos Olhos de Oyá.

O Instituto a homenageia relembrando histórica capa e a entrevista (exclusivas) da Revista Carioquice deste Instituto, por Mônica Sinelli, em que ela perfila seu amor e suas memórias afetivas associadas ao Rio de Janeiro.

Aqui ela chegou, em 1965, para estrelar o espetáculo “Opinião”, no antigo Teatro de Arena, em Copacabana, e escrever uma trajetória brilhante, personalíssima. Nós, cariocas, nem temos como agradecer a soberana escolha por estar até hoje iluminando a Cidade Maravilhosa.

Bethânia é verbete de honra do Dicionário Cravo Albin.

“Corre o ano de 1963. A filha de dona Canô e seu José, funcionário do Departamento de Correios e Telégrafos, nascida em Santo Amaro da Purificação, ensaia os primeiros passos no meio artístico. Ao lado do irmão Caetano (que sugeriu seu nome de batismo inspirado no título de uma valsa do compositor Capiba), Gil, Gal, Tom Zé, Djalma Correa, Pitti, Perna Froes e Alcyvando Luz, encena “Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova”, em Salvador. E quem surge na plateia? Nara Leão, a musa do movimento musical intimista que vinha embalando o Brasil desde fins da década de 1950.

Levada pelo iluminador do espetáculo, Roberto Santana, que também está trabalhando com ela em sua temporada na Bahia, Nara não esquecerá o que viu no Teatro dos Novos. Tanto que, dois anos depois, convidará a menina magrinha e de voz impactante para substituí-la no show “Opinião”, dirigido por Augusto Boal no Teatro de Arena, ao lado de Zé Keti e João do Vale. Mas só por quatro noites, até que se recupere de uma gripe.

Autorizada pelos pais, Maria Bethânia, aos 17 anos, desembarca na Cidade Maravilhosa em companhia de Caetano. “Foi muito violenta a chegada, para variar. Minhas coisas são assim. Ligamos do aeroporto para o Vianninha (Oduvaldo Vianna Filho), responsável por toda a negociação. Já eram dez horas da manhã, e ele dormia. Para nós, aquilo pareceu esquisitíssimo.

Falei: ‘Caetano, é tudo mentira, vamos voltar.’ Ele me acalmou. Pegamos um táxi até o teatro, que, claro, estava fechado. Me apavorei: ‘Que lugar é esse em que me convidam e não me recebem?’ Enquanto caminhávamos por Copacabana, me lembro perfeitamente do primeiro perfume que senti – e que, para mim, é o retrato do bairro pelo qual sou apaixonada: a mistura de maresia, gasolina e batata frita. Amo esse cheiro maravilhoso até hoje, porque representou um acolhimento.

Nunca vou me esquecer: em meio àquele impressionante turbilhão de gente, estourou uma tempestade, dessas em que o Rio vira noite. Uma hora de trovão, raio, chuva; alagou tudo. Às três da tarde, resolvemos ir para a casa de nossos primos, no Méier. Acontece que me perdi de Caetano. Entrei no ônibus, e ele não conseguiu subir. E gritava: Eu lhe pego no próximo ponto!” – ri Bethânia. Às nove da noite, os dois irmãos estão de volta ao teatro de Arena. “Tereza Aragão, uma das proprietárias e esposa de Ferreira Gullar, um dos autores do espetáculo, me recebeu e conversou atenciosamente comigo. Aí, eu respirei. Mas, na reunião de produção, dei um ataque.

Queriam, lógico, me colocar num hotel, e eu nunca tinha me hospedado em nenhum.

Reagi: ‘Não aceito, sou virgem! Hotel não é lugar para rodeada pela mãe, dona Canô, e Caetano Veloso com o pai, seu José Bethânia e o irmão Caetano .’ Foi horrível. A mulher de Glauber Rocha, Rosinha Penna, então presente, me chamou para ficar no apartamento dela, ao pé do Santa Marta. Era só atravessar o túnel, andando, e eu chegava ao teatro.”

Várias mães e um pai. Bethânia já se prepara para retomar a vida de estudante em sua terra (“estava em segunda época em matemática, para variar”), quando lhe avisam que a permanência não seria apenas por quatro noites – mas definitiva. “Regressei a Santo Amaro e pedi o consentimento de meus pais. Na volta ao Rio, fui morar na casa da professora Geni Marcondes, diretora musical do Opinião, no intuito de que me ensinasse o show. Ela tinha um apartamento lindo em Ipanema, com uma água furtada e vista para o Cristo Redentor. Eu acordava e havia um prato de uva para mim. Ganhei mães aqui de imediato. Foi maravilhoso. Mas a professora, tão delicada, era também rigorosíssima. Os ensaios duravam 12 horas por dia. Num deles, aparece Vinicius de Moraes. Tereza me disse, toda séria: ‘vou lhe apresentar o grande poeta’. Olhei para a cara dele e morremos de rir, nos beijamos, ficamos de mãos dadas e viramos amigos. Além de uma porção de mães, ganhei outro pai. Na estreia, Nara me perguntou: ‘Está nervosa?’ Respondi que não. E não estava mesmo. Aos 17 anos, ninguém tem medo de nada. Hoje, sim, tenho medo – de tiro, violência, desgoverno. E tremo antes de entrar em cena.”

Em 1965, grava seu disco de estreia, um compacto simples com a interpretação arrebatadora de Carcará (de João do Vale) e É de manhã, primeiro registro de uma canção de Caetano. E lança o LP inaugural, “Maria Bethânia”. A nova estrela da música brasileira vê então pela primeira vez a passagem de uma escola de samba – a Império Serrano, saindo do Forte de Copacabana. “Fiquei louca, emocionada, chorava muito. Jamais vou esquecer: Ao erguer a minha taça com euforia… – cantarola. Tereza era carioquérrima, da Tijuca, conhecia profundamente a grande música do Rio, de dentro dos morros. E me levava a todos os lugares, Zicartola, Estudantina. Porém, a sensação maior foi quando me chamou para assistir ao desfile da Mangueira, no Centro da cidade. O dia estava nascendo, e comecei a ver a escola entrando, a ouvir o som daquela bateria linda, uma batida completamente diferente de todas que eu conhecia. Quase morri de emoção. E Tereza, salgueirense aguerrida, indignou-se: ‘só faltava você ser mangueirense!’ Respondi: ‘Mas eu me tornei, e você que me trouxe!’” – diverte- -se a cantora, que, junto com Gal, Caetano e Gil, saiu em 1994 pela agremiação na Marquês de Sapucaí, sob o enredo em homenagem aos Doces Bárbaros.

“Foi deslumbrante, inesquecível, uma honra. Mas prefiro assistir a desfilar. Alcione brinca, dizendo que para eu desfilar é preciso que me coloquem na Apoteose, porque sambo de costas. Em 1970, estrela “Brasileiro, profissão esperança”, de Paulo Pontes, com direção de Bibi Ferreira, no Teatro Casa Grande. No ano seguinte, grava o disco “A tua presença”. No início da década, vai morar em Ipanema. “Na rua Nascimento Silva, quase esquina do restaurante Pizzaiollo, onde havia na calçada placas em cimento com as mãos dos artistas. Nessa época, o Rio era meu, vivia a cidade intensamente. Saíamos em grupo (Tereza, Araci de Almeida, Ítalo Rossi, Leina Krespi e Gracindo Junior) toda noite, após o Opinião. Fazíamos a ronda das boates. Cantei em várias – Cangaceiro, Barroco, Arpège, Ruibarbossa, Sucata. Eu tinha moto, andava na praia de madrugada, era bonito demais, não existia pânico. Ia dormir às 11 da manhã. A gente se divertia muito.” Em 1972, decide comprar uma casa. “Fui criada assim, com quintal, não gosto de apartamento, me mantenho interiorana. Além das mansões da Zona Sul – que não era o que eu queria, nem podia financeiramente –, começavam a surgir casas na Barra da Tijuca. Mas não gostei da região. O corretor me informou que em São Conrado, então uma área de mato, deserta, havia uma casa linda, mas que custava o dobro do valor de que eu dispunha. Pedi para vê-la, só para ficar alegre, porque nada do que me mostrou tinha me agradado. Ao chegar lá, falei: ‘essa é minha!’ Ele respondeu: ‘Infelizmente, você não possui o dinheiro.’ Dias depois, o casal proprietário me telefonou: ‘Bethânia, nós adoramos você, soubemos que gostou da nossa casa e queremos que fique com ela, mesmo pela metade do preço, pois vamos morar numa fazenda.’” E este constitui um capítulo à parte. A casa, que tanto a encanta, espelha a nova dona: exibe um estilo único. Sob influência da arquitetura japonesa – piso de seixos, teto de palha –, incrusta-se num paraíso de árvores seculares. “É difícil fazer reforma, por causa das características específicas, como os pagodes com madeira, as telhas de cimento e malacacheta. Tudo brilha quando acende a lua. Nunca mais saí de lá, nem quero. Mas São Conrado mudou demais, derrubaram a mata ao pé do anfiteatro formado pela Pedra da Gávea, Pedra do Índio e Pedra Bonita. Quando Brizola, como governador, liberou o gabarito – numa área em que, segundo o projeto de Oscar Niemeyer, só se previam no máximo cinco andares –, subiram os espigões que tiraram a ventilação marinha. Fazia bastante frio ali. Até hoje se mantém um microclima.” Ela prossegue: “Recentemente, derrubaram muita mata para erguer edificações. Antes, eu via a praia inteira de São Conrado, agora só vejo o mar entre um prédio e outro. O que me preocupa e entristece é que eles jogam holofotes na floresta, sem contar o som pesadão, e os animais gritam e fogem à noite. Minha casa vive cheia de bichos – macaco, porco-espinho, tucano –, que fazem uma farra ao redor das jaqueiras, pitangueiras e goiabeiras. Então, aquele núcleo de bairro, quietinho, pequeno, com a estradinha de barro, desapareceu. Mas gosto de ir à igrejinha, tem padres bons, inteligentes”, revela Bethânia, que gravou o hino Pequena canção para São Conrado, como presente em homenagem ao centenário da capela.

“O Rio me comove, amo olhar a pedra de São Conrado, que tem uma força mágica, e vir de carro pela avenida Niemeyer. Saio bem pouco, mas gosto de me informar sobre os acontecimentos da cidade. Não vou a restaurantes. Fui criada comendo à mesa com a família inteira e, neles, não conheço as pessoas ao lado, e isso me angustia. Gosto de cozinhar para mim no dia a dia. Sou bicho do mato, interioraníssima. Porém, combino com o Rio de Janeiro, que representa a moldura perfeita para o que sinto. Vim para passar quatro noites e estou aqui há 50 anos. É a cidade mais linda do mundo. Ela e Santo Amaro”, declara docemente Bethânia. “


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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