Por Jorge Folena

Tramita desde 2001 na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4.363, que estabelece normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, e dá outras providências, cuja pretensão é substituir o Decreto-lei 667, de 02 de julho de 1969, editado na sequência do Ato Institucional número 05, de 13/12/1969 (AI-5), durante o período mais árduo da última ditadura brasileira.

Na verdade, o projeto de lei não debate a proposta, defendida por diversas entidades de proteção e defesa dos direitos humanos, de desmilitarizar a polícia, que está estruturada não para proteger o cidadão, mas para combatê-lo e eliminá-lo, seguindo a doutrina de segurança nacional colocada em prática pelo regime militar de 1964-1985, que ainda permanece norteando a atuação repressiva e extremamente violenta das Polícias Militares do país, que travam uma luta de morte e extermínio contra a população jovem e negra, num comportamento que traz consigo um típico traço das mazelas do colonialismo, que ainda se faz presente em pleno século XXI.

A Constituição brasileira afirma que cabe privativamente à União legislar sobre o assunto tratado no referido projeto de lei e, ao tratar da segurança pública, a nossa carta constitucional dispõe que “às polícias militares cabem a política ostensiva e a preservação da ordem pública”, classificando-as como “forças auxiliares e reservas do Exército, subordinando-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.”

Ou seja, pela Constituição, as polícias militares e civis estão subordinadas aos governadores dos Estados, em respeito às cláusulas pétreas da separação de poderes e da federação.

Ocorre que o referido projeto de lei pretende assegurar autonomia para o comando das polícias militares, de tal forma que o indicado tenha assegurado o exercício de um mandato de 2 anos, que pode ser prorrogado por igual prazo; como assim está redigido:

“Art. 28. Os Comandantes-Gerais das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares serão nomeados por ato do Governador, entre os oficiais da ativa do último posto do respectivo quadro a que se refere o art. 13, inciso I, dentre os integrantes do primeiro terço de antiguidade, para um mandato de dois anos, permitida uma recondução, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros das Assembleias Legislativas dos Estados ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal. § 1o. A destituição dos Comandantes-Gerais das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares, por iniciativa do Governador, antes do término do mandato, deverá ser precedida de autorização da maioria absoluta dos membros das Assembleias Legislativas dos Estados ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal.”

Como se pode verificar, o projeto de lei pretende limitar a subordinação dos comandos das polícias militares em relação aos Governadores dos Estados (chefes do Poder Executivo Estadual), que poderão indicar os Comandantes, porém não poderão destituí-los a qualquer tempo, a menos que sejam autorizados pela maioria absoluta dos membros do Poder Legislativo Estadual.
O projeto assegura uma certa autonomia aos Comandantes das Polícias Militares em relação ao chefe do Poder Executivo, um pouco semelhante à atribuída ao Procurador Geral da República, como previsto na Constituição.

Nesse ponto, já podemos afirmar que o projeto está impregnado de um republicanismo extremamente exagerado para o Brasil, que faz com que as práticas patrimonialista persistam de modo alarmante em diversas Instituições públicas, que se comportam de forma a impedir o exercício da transparência e da igualdade, princípios fundamentais de uma autêntica República.

Assim, caso venha a ser aprovada esta proposta, o Governador do Estado (como chefe do Poder Executivo Estadual, eleito pela vontade da maioria da população) não poderá mais demitir um comandante da polícia que, por exemplo, tenha determinado uma ação policial repressiva e abusiva, que tenha conduzido à morte de diversas pessoas indefesas; devendo o Governador submeter-se à autorização da maioria absoluta do Poder Legislativo para destituir o comandante da polícia militar responsável pela atrocidade.

Sem dúvida, o projeto atenta contra o Princípio Constitucional da Separação de Poderes, na medida em que retira atribuição específica do chefe do Poder Executivo e limita sua atuação à vontade do Parlamento, na hipótese de pretender a demissão do Comandante da Polícia Militar.

Ademais, a Constituição de 1988, em respeito ao pacto federativo, no capítulo sobre a segurança pública, determinou que as Polícias estão subordinadas aos governadores dos Estados, espelhando a atribuição do Presidente da República (no âmbito federal), que exerce o comando supremo das forças armadas, a partir do sufrágio universal e da escolha manifestada pela soberania popular.

Esta tentativa de atribuir uma autonomia aos comandos das polícias militares é extremamente perigosa, não apenas pelas flagrantes violações à Constituição, ora apontadas, mas também pelas constantes práticas de abuso, arbitrariedade e corporativismo observadas ao longo do tempo.

Eventual aprovação desse projeto de lei poderia acarretar ainda mais empoderamento dos efetivos policiais, que pode levar ao domínio total da sociedade civil por uma instituição armada, que constantemente ameaça e oprime a coletividade e sobre a qual há muito tempo não existe qualquer controle.

Para deixar mais clara a nocividade da infeliz proposta de autonomia aos comandos das Polícias Militares, a obra “A república das milícias – dos esquadrões da morte à era Bolsonaro”, do jornalista Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Editora Todavia, 2020), registra o perigo de termos uma polícia totalmente autônoma, em padrões mais que “republicanos” num país nada republicano, tomado por forças milicianas (oriundas e próximas das corporações policiais), que, de modo clandestino e pela violência, usurpam nas ruas do país a atribuição precípua do Poder Público de zelar pela segurança das comunidades e dos cidadãos.

Por fim, o tema também nos coloca diante da necessidade de refletir sobre a urgente reforma dos amplos poderes de autonomia concedidos ao Ministério Público e ao Sistema de Justiça do país, a partir da Constituição de 1988, diante de todos os abusos praticados e das graves perdas decorrentes da Operação Lava Jato, que, em seu trajeto de destruição da política e da economia, ajudou a gestar o ovo da serpente que trouxe à tona o fascismo que se propaga no país.


JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.