Por Luiz Carlos Prestes Filho

Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre, o compositor Jorge Antunes, destacou: “Em 1938 Leon Trótski, Diego Rivera e André Breton criaram a FIARI (Federação Internacional de Arte Revolucionária e Independente). A luta dos artistas progressistas, na época, era contra a arte capitalista e contra o cerceamento da liberdade artística pelo fascismo e pelo stalinismo. O movimento repercutiu no Brasil e alguns artistas e estetas, como Pagu e Mário Pedrosa, lideraram grupos no país. Mas o movimento durou apenas dois anos, por causa da eclosão da guerra mundial no ano seguinte e o assassinato de Trótski, em 1940. No momento eu e outros artistas estamos organizando a refundação da FIARI. Comigo nesse projeto estão o suíço Luca Forcucci, a norte americana-francesa Eugénie Kuffler e o argentino-brasileiro Roberto Rutigliano.” Residente em Paris, realizando a ópera “Lepoldina”, o compositor afirmou:

“O mundo operístico brasileiro está de olho em minha nova ópera. Todos estão esperançosos com sua possível estreia em 2022 nas comemorações do Bicentenário da Independência. Produtores, diretores de festivais, teatros, maestros, todos têm “Leopoldina” em seus projetos de programação. Mas nada pode ser agora garantido, porque o que está em pauta hoje é a crise sanitária, a crise econômica, a crise política e a fragilidade de nossa democracia.”

Jorge Antunes é um compositor e maestro brasileiro, bacharel em Física pela Faculdade Nacional de Filosofia, precursor, da música eletrônica no Brasil desde 1961. (Divulgação)

Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música clássica?

Jorge Antunes: Não me importo com essas diferentes denominações. Dependendo do público com o qual dialogo, ou ao qual me dirijo, uso uma ou outra dessas expressões. Todas designam a mesma coisa. Não concordo com a opinião de que essa ou aquela expressão é discriminatória. Lembremo-nos de que em outros países são usadas expressões bem polêmicas: música culta, música artística, musique sérieuse, musique savante, art music e serious music.

Prestes Filho: Música Eletrônica, Música Eletroacústica ou Música Acusmática?

Jorge Antunes: Aqui, sim, existem nuances importantes nos significados dessas expressões. A expressão “música eletrônica” foi usada, desde o final da primeira metade do século XX, para designar a música feita em laboratório usando-se sons eletrônicos fixados em suporte físico: disco, fita magnética, CD. No mesmo momento histórico surgiu a expressão “música concreta”, para designar a música feita com a mesma técnica, mas sem uso de sons eletrônicos: usando apenas ruídos e outros sons captados por microfone. A partir do final dos anos 1960, quando a música popular começou a usar os mesmos recursos tecnológicos, a indústria do divertimento se apropriou do termo. Foi quando surgiu a expressão “música eletroacústica”, para designar a música eletrônica não pop. Eu costumo dizer que, hoje, a música eletroacústica serve para a movimentação do intelecto, enquanto a música eletrônica pop serve para a movimentação do esqueleto.

A expressão “música acusmática” surgiu na França, criada pelos compositores egressos da prática da música concreta, para designar a música eletroacústica usando sons desprovidos de indícios de suas fontes originais. Ou seja, é a música que demanda uma escuta reduzida, sem que nos reportemos às fontes sonoras que produziram os sons.

1961, amplificador precursor da música eletrônica

Prestes Filho: Desde o primeiro concerto de Música Eletroacústica no Brasil até os dias de hoje, o quanto avançamos neste campo? Sua visão é única sobre o tema. Até porque, como disse recentemente, você vem da época dos circuitos à válvula!

Jorge Antunes: O primeiro concerto de Música Eletroacústica no Brasil, aconteceu no dia 24 de setembro de 1961, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, organizado pelo maestro Eleazar de Carvalho na série “Concertos para a Juventude”. Nesse concerto foram apresentadas obras do alemão-holandês Gotffried Michael Koenig e do belga Henri Pousseur. Na mesma época a pianista e compositora Jocy de Oliveira realizou um espetáculo usando música eletroacústica do italiano Luciano Berio. Vim a conhecer pessoalmente os compositores Gotffried Koenig e Henri Pousseur dez anos depois, em circunstâncias bem especiais. Koenig foi meu professor na Holanda no Instituto de Sonologia da Universidade de Utrecht, quando eu era bolsista do governo holandês em 1971, e Pousseur foi membro do Júri quando ganhei o primeiro prêmio, na Itália, no concurso de composição Prêmio Angelicum di Milano. O concerto organizado pelo maestro Eleazar me influenciou bastante, porque na época eu já tinha acesso a sons eletrônicos em meu trabalho de consertar aparelhos de rádio. Aos 15 anos de idade comecei a estudar rádio técnica e a ganhar um dinheirinho consertando rádios de amigos e vizinhos. Ao sair do concerto do Theatro Municipal e chegar em casa, comecei, no mesmo dia, um domingo, a brincar e experimentar com os sons eletrônicos que eu tinha disponíveis com o gerador de ondas dente-de-serra de meu osciloscópio.

Assim, em setembro-outubro de 1961 compus minha obra “Pequena Peça para Mi Bequadro e Harmônicos”, usando sons de piano e do gerador de ondas dente-de-serra.

1967 – Instituto Villa-Lobos, Rio de Janeiro

No início de 1962 compus a primeira obra usando unicamente sons eletrônicos: “Valsa Sideral”. Dez anos depois vim a conhecer pessoalmente, em circunstâncias bem especiais, aqueles dois compositores do concerto de 1961: Gotffried Michael Koenig e Henri Pousseur. Koenig foi meu professor na Holanda, no Instituto de Sonologia da Universidade de Utrecht, quando eu era bolsista do governo holandês em 1971. Pousseur foi membro do Júri quando ganhei o primeiro prêmio, na Itália, no concurso de composição Prêmio Angelicum di Milano. Quando voltei ao Brasil em 1974, depois do exílio no exterior com bolsas de estudo de governos estrangeiros, a música eletroacústica ainda era bastante insipiente no nosso país. Integrando o corpo docente da Universidade de Brasília, criei um estúdio de música eletroacústica no Departamento de Música. Lá já estava o compositor uruguaio Conrado Silva e começamos a desenvolver projetos e cursos na área. Na época jovens compositores brasileiros passavam, após formados, a também viajarem ao exterior para cursos de pós-graduação em música eletroacústica. Ao voltarem ao Brasil, a partir de 1980, alguns eram contratados por universidades do Rio, de Salvador, de São Paulo, de Santa Maria, e novos cursos universitários e laboratórios passaram a ser instalados nos nossos cursos superiores. O que se seguiu foi uma reação em cadeia de surgimento de novos compositores na área.

Hoje contamos com mais de 200 compositores brasileiros praticando música eletroacústica.

Prestes Filho: Cite os nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores de Música Acusmática que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tem para você importância estruturante na sua formação.

Jorge Antunes: Muitos grandes mestres foram fundamentais para a minha formação. Alguns deles foram meus professores: Henrique Morelembaum, Guerra Peixe, Alberto Ginastera, Luis de Pablo, Gotffried Michael Koenig, Pierre Schaeffer, François Bayle, Francisco Kroepfl e Guy Reibel. Outros, também importantes na minha formação, são aqueles cujas obras estudei e com quem convivi em festivais ou que foram meus orientadores no mestrado e no doutorado: Jean-Claude Risset, György Ligeti, Iannis Xenakis e Witold Lutoslawski.

Prestes Filho: Quais movimentos de Música Contemporânea você acompanha de perto? Como professor, você afirmaria que nas faculdades de música e conservatórios a música contemporânea já ocupa o espaço que deveria ocupar?

Jorge Antunes: De perto eu acompanho intensamente, com participação pessoal e apresentação de minhas obras, os grandes e principais eventos de música contemporânea no mundo inteiro. Mas hoje não encontramos mais, na música contemporânea, grupos ou iniciativas a que possamos chamar de “Movimento”. Em primeira mão, eu deixo aqui importante notícia sobre um novo Movimento que está surgindo: a Nova FIARI. Em 1938 Leon Trótski, Diego Rivera e André Breton criaram a FIARI (Federação Internacional de Arte Revolucionária e Independente). A luta dos artistas progressistas, na época, era contra a arte capitalista e contra o cerceamento da liberdade artística pelo fascismo e pelo stalinismo. O movimento repercutiu no Brasil e alguns artistas e estetas, como Pagu e Mário Pedrosa, lideraram grupos no país. Mas o movimento durou apenas dois anos, por causa da eclosão da guerra mundial no ano seguinte e o assassinato de Trotski em 1940. No momento eu e outros artistas estamos organizando a refundação da FIARI. Comigo nesse projeto estão o suíço Luca Forcucci, a norte americana-francesa Eugénie Kuffler e o argentino-brasileiro Roberto Rutigliano. A ideia é reorganizar grupo de artistas para combater o neofascismo e o bonapartismo que grassam em muitos lugares do mundo e que vêm massacrando a prática cultural e artística. Como professor, apesar de ter-me aposentado há 10 anos, posso afirmar que a música contemporânea ainda não ocupa o lugar de destaque que deveria ocupar nos Conservatórios e Universidades.

Infelizmente, ainda é muito grande o conservadorismo nesses celeiros de formação musical profissional.

1998 – Antunes (dir.) com o engenheiro, arquiteto, teórico musical e compositor grego, naturalizado francês Iánnis Xenákis. É considerado como um dos mais influentes compositores do século XX

Prestes Filho: Como foi o processo de invenção da ópera “Olga”? Qual foi o principal desafio na estruturação da linguagem? As vidas heroicas de Olga Benário e de Luiz Carlos Prestes, que já inspiraram Pablo Neruda, Jorge Amado, Cândido Portinari e Oscar Niemeyer, entre muitos outros, ganhou o seu retrato sonoro. Quais foram as suas “tintas”, suas “palavras”, suas “rimas” e qual foi o seu projeto de “arquitetura”?

Jorge Antunes: O sonho de compor a ópera “Olga” começou em 1966, quando eu tinha 24 anos de idade. Eu conhecia a história de Olga desde criança. Minha mãe me contava a história de Olga, de modo velado, porque na época era uma história proibida. Minha mãe, em 1935, ainda solteira, órfã, morava com seus sete irmãos em Caxambi, próximo ao bairro do Méier, no Rio de Janeiro. Um dos revoltosos presos contou, sob tortura, que Olga e Prestes estavam escondidos no Méier. Filinto Müller mandou vasculhar, com invasão policial, todas as casas da região. A casa de minha mãe foi uma das invadidas e revistadas. Com o processo de abertura política, no final do governo Figueiredo, comecei a alinhavar o esquema da ópera, pois pressenti que o tema, da então história recente do Brasil, já poderia passar a ser divulgado. Em 1985 encomendei e li o livro de Ruth Werner sobre a vida de Olga. Em 1986 Fernando Morais publicou o livro “Olga”. Tomei então a coragem e a decisão de escrever a obra, que comecei em 1987. Convidei, por carta, o Fernando Morais a escrever o libreto. Na época ele era deputado em São Paulo. Não recebi resposta. Em 2007 o encontrei, e soube que a carta nunca chegara a ele. Em 1987 convidei o poeta Gerson Valle, meu biógrafo e ex-aluno, a escrever o libreto. Naquele mesmo ano visitamos o Prestes e lhe mostramos a sinopse.

Ele gostou e aprovou.

Compus o primeiro e o segundo atos entre 1987 e 2000. Em 2001 ganhei a Bolsa Vitae para compor o segundo ato. Em 2002 ganhei uma bolsa de pós-doutorado do CNPq, para pesquisar, na Alemanha, as canções revolucionárias da Juventude Comunista Alemã, que eram cantadas por Olga e seus companheiros. Pesquisei em Ravensbrück, Benburg, Berlim, Jerusalem, Tel Aviv e Paris, sobre os últimos sete anos de vida de Olga, anos em que ela passou na prisão e em campos de concentração. Ao voltar ao Brasil em 2003, compus o terceiro ato. Dei início a uma luta e campanha para encenar a ópera. Fiz uma exposição no saguão da Biblioteca da Universidade de Brasília, intitulada “Um Palco para Olga”, com ampliações das cartas que recebi de sessenta empresas, às quais pedi apoio: eram sessenta cartas-respostas negando apoio para a ópera. Na exposição foi feito um abaixo-assinado, com a adesão de mais de dez mil pessoas, dirigido ao governador do DF, pedindo que a ópera fosse estreada. Organizei, com mais de duzentos músicos, uma carreata rumo ao Palácio do Buriti. Um carro de som do sindicato dos funcionários da UnB ia à frente, tocando a Abertura da ópera, com gravação feita pela OSESP.

O abaixo-assinado foi entregue ao governador, mas não resultou em coisa alguma. Em 2004 a Globo Filmes fez o filme “Olga”. Achei que a estreia de “Olga” passaria a ficar mais fácil, porque os teatros e programadores certamente já não achariam o tema tão subversivo. Imaginei que todos pensariam o seguinte: “Se a Globo divulga a história de Olga, então os donos do poder já não mais censurarão a ópera”. Pedi uma entrevista ao diretor musical do Theatro Municipal de São Paulo, Ira Levin, para lhe mostrar a partitura. Acertei o encontro por telefone. Viajei de Brasília a São Paulo para isso. Ao chegar ao Theatro, no horário marcado, a secretária dele me disse que ele não ia me atender e que deixara o recado de que não estava interessado em óperas brasileiras. Aproveitei a estada em São Paulo para visitar a Orquestra Experimental de Repertório, e mostrei a partitura ao maestro Jamil Maluf. Dois anos depois Jamil foi nomeado diretor do Theatro Municipal. Telefonou-me em fevereiro de 2006, para me informar que ia montar “Olga” em outubro daquele ano. Assim aconteceu. A ópera teve cinco récitas com o teatro cheio. No último dia de apresentação, num domingo, o enorme público em fila fazia uma volta em torno do teatro, e centenas de pessoas não conseguiram entrar porque logo se esgotaram os ingressos. Em 2013 a ópera “Olga” foi programada em Brasília, no Teatro Nacional, em três récitas, também com grande sucesso. Em 2019 a ópera “Olga” teve apresentações na Polônia, na Opera Balticka Gdansk, com uma belíssima produção e um elenco de excelentes artistas poloneses, sempre com grande sucesso. Agora em 2021, em março, repetiram novas apresentações em Gdansk, que foram transmitidas para todo o mundo por streaming. “Olga” é uma ópera em que utilizo minha linguagem atual que concentra as várias etapas estéticas que vivi e abracei em minha carreira. Ou seja, é bem eclética, com a junção do experimentalismo, com a tradição.

Nela convivem o canto lírico, o atonalismo, o modalismo, o neotonalismo, o eletrônico, a textura sinfônica e a massa coral.

Prestes Filho: Na ópera “Leopoldina”, que você realiza durante a sua atual residência artística em Paris, também acontecerá o encontro de sons eletroacústicos com a orquestra sinfônica?

Jorge Antunes: Sim. Fiquei muito feliz e realizado com os resultados musicais e com o sucesso de “Olga”. Então tratei de usar as mesmas “fórmulas” em “Leopoldina”. O ecletismo está presente. Sons eletrônicos dialogam com a orquestra. A grande diferença, comparando “Olga” com “Leopoldina”, é que nesta nova ópera eu e o libretista decidimos por um discurso não linear. Em “Olga” a história é contada de modo cronológico, com as cenas se sucedendo linearmente seguindo passo a passo os acontecimentos históricos. Em “Leopoldina” não há linearidade no discurso dramático-musical.

Prestes Filho: O libretista, o poeta Gerson Vale, trabalhou com você na ópera “Olga” e agora está ao seu lado desenvolvendo a ópera “Leopoldina”. A mesma estética e a mesma ética que uniram vocês?

Jorge Antunes: Exatamente. Mas, diferentemente de “Olga”, em “Leopoldina” tudo é contado de modo não linear, com a alternância de cenas de uma escola de samba, em pleno século XXI, que prepara desfile carnavalesco homenageando a arquiduquesa austríaca, imperatriz e mãe do Brasil independente. A trama do libreto conta a história de vida da Arquiduquesa Princesa Leopoldina Habsburgo que casou-se por procuração, em 1817, com o Príncipe D. Pedro de Bragança. A ópera começa justamente com cenas da festa de casamento oferecida pelo Marquês de Marialva, no palácio Augarten, em Viena, com duas orquestras: uma em cena, tocando valsas do baile, e a outra normal, da ópera, no fosso.

A trama se desenvolve em seguida no Rio de Janeiro, onde a Imperatriz Leopoldina assume um verdadeiro espírito de brasilidade, defendendo o povo brasileiro, culminando com o grande ato histórico de 2 de abril de 1822, em que ela assinou decreto declarando o Brasil independente de Portugal. Na sequência, o drama cênico-musical retrata o sofrimento e humilhação que lhe são impostos pelo marido D. Pedro, até o aborto de seu nono bebê e sua morte. Mas a ópera não termina na morte de Leopoldina. O espetáculo prossegue. A escola de samba desfila. O samba é triste: uma marcha-rancho. O libretista, meu amigo Gerson Valle, havia escrito um final sem grandes emoções, com o simples desfile da escola de samba no final. Eu reclamei e passei para ele uma ideia bem arrojada de que ele gostou e logo incorporou ao libreto. Em um dos carros alegóricos da escola de samba que homenageia a Imperatriz, está a professora Dina, fantasiada de Leopoldina, que é destaque da escola no alto de um carro alegórico. Essa personagem é interpretada pela mesma soprano que cantou durante toda a ópera interpretando o papel da imperatriz. Uma jornalista, de equipe de televisão, entrevista a professora Dina, uma líder comunitária que vem sendo ameaçada de morte por milícias. A jornalista, na entrevista, lhe faz a seguinte pergunta: “Professora Dina, a senhora é conhecida por suas firmes críticas à nossa sociedade, aos preconceitos, à misoginia, às injustiças sociais, à violência das milícias. Parabéns pela coragem! Como foi representar uma rainha, afinal, dentro da monarquia, sistema político contrário às suas convicções?”

A resposta da professora Dina – que encarna, incorpora totalmente o pensamento, a luta, o ideário de Leopoldina – é uma longa ária bastante forte e comovente, que fala das utopias, dos anseios, das desilusões e das esperanças dela e do povo brasileiro.

Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?

Jorge Antunes: Falar sobre perspectivas para os próximos anos seria uma temeridade, seria uma audácia, seria um exercício de ingênuo otimismo ou ingênuo pessimismo. Não sei como serão os próximos anos. A comunidade artística em geral, e a comunidade musical em particular, todos estamos em compasso de espera. Com o genocídio patrocinado atualmente pelo Estado brasileiro, pensamos mais na vida e na sobrevivência do que na prática artística. A desastrosa política externa brasileira nos criou problemas sérios com antigos países amigos. Assim, o Brasil é visto no exterior com desconfiança e descrédito. A comunidade artística brasileira está sem trabalho, sem saúde pública decente, sem teatros, sem palcos, sem vacina e, por isso, tudo está sendo repensado no momento. Muitos acusam o poder executivo. Eu acuso o Estado brasileiro. Acuso os três Poderes. Acuso as Forças Armadas. Acuso os meios de comunicação alienantes. Acuso a criminosa indústria da cultura e a invasão colonizadora neopentecostal que emburreceram o povo brasileiro. A irresponsabilidade é total. No dia 3 de abril tomei a primeira dose da vacina Pfyzer contra o Covid-19, aqui em Paris. Eu poderia ter tomado bem antes, mas estava esperando terminar a polêmica sobre a vacina AstraZeneca e esperando a disponibilização da Pfizer/BioNTech. Tudo perfeito, fácil, com agendamento na internet. Enquanto isso, vi recentemente um vídeo com imagens de uma fila enorme de carros em Brasília, para vacinação de idosos. Homens e mulheres com mais de 70 anos de idade esperavam horas para serem vacinados, sofrendo na fileira com cerca de mil carros sob o sol escaldante. No que concerne a mim, continuo compondo música, como sempre fiz, mas na expectativa de tempos melhores. O mundo operístico brasileiro está de olho em minha nova ópera. Todos estão esperançosos com sua possível estreia em 2022 nas comemorações do Bicentenário da Independência. Produtores, diretores de festivais, teatros, maestros, todos têm Leopoldina em seus projetos de programação. Mas nada pode ser agora garantido, porque o que está em pauta hoje é a crise sanitária, a crise econômica, a crise política e a fragilidade de nossa democracia.

Prestes Filho: Como membro da Academia Brasileira de Música (ABM) você entende que o compositor deve participar de associações e de sindicatos para encaminhar reivindicações sociais e participar ativamente das lutas populares?

Jorge Antunes: Entendo, sim, essa necessidade de o compositor participar de grupos ativos nas lutas populares. Mas penso, assim, como cidadão, e não como membro de ABM. A Academia Brasileira de Música não é uma associação desse tipo: ela é múltipla, congregando compositores, instrumentistas e musicólogos dos mais diversos matizes estéticos e ideológicos. Creio que é uma obrigação do compositor não se encerrar em uma torre de marfim. O compositor que se tranca em torre de marfim é um compositor criminoso. Eu sou um daqueles que fazem música para os outros. Você sabe que existe compositor que faz música para si mesmo. Não me interessa atuar como Villa-Lobos que dizia escrever cartas à posteridade sem esperar resposta. Eu faço música para o homem de hoje, esperando respostas. Em geral, as respostas logo acontecem. A isso eu chamo comunicação estética plena. Estou certo de que essa estratégia garante a perenidade e o caráter imorredouro da obra de arte. Alguns dizem que algumas de minhas obras, tais como a ”Elegia Violeta para Monsenhor Romero”, a ”Sinfonia das Buzinas”, a “Sinfonia em Cinco Movimentos” e minhas óperas de rua ”Auto do Pesadelo de Dom Bosco”, Olympia” ou “Sujadevez” e ”O Exfakeado” são obras circunstanciais por terem caráter político. Estão redondamente enganados. Essas são obras que se comunicaram e se comunicam com o público de hoje, que receberam respostas dele, e que por essa razão ficarão para os homens de amanhã: os homens da nova sociedade que será construída, não consumista, não capitalista, não fratricida. A interrelação entre arte e política é importante porque não há vida em sociedade sem política. Sou um dos poucos artistas que não são enganados pela campanha mentirosa, promovida pela burguesia, que trata de demonizar a política como sendo coisa feia e suja. Feios e sujos são os políticos profissionais corruptos.

Como dizia Proudhon, política é a ciência da liberdade. Quando o artista consegue, com sua obra e com sua voz, se comunicar com o público, ele passa a ser responsável pelo futuro desse publico. Se o compositor insere, em sua obra, o potencial da persuasão, do convencimento, da sedução, ele consegue interferir nos rumos da sociedade. Consigo fazer isso sem mediocrização, sem simplismo, com erudição, mantendo alto o grau de complexidade da obra. A vida imita a arte. Sempre tentei e consegui formar e liderar grupos de músicos para lutar pelas causas profissionais e pelas causas populares. A experiência que ganhei na política estudantil a partir dos 14 anos de idade, no Colégio Pedro II, eu a levei à Escola de Música da Rua do Passeio, quando fui presidente do Diretório Acadêmico e lutamos contra a Lei Suplicy de Lacerda e participamos da Greve do Um Terço. Ao voltar do exílio, já vivendo em Brasília, desenvolvi com alunos e ex-alunos uma aguerrida e exitosa gestão na presidência da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), fundei o Movimento Candango de Música Contemporânea, e fomos partícipes importantes no Movimento das Diretas Já. Mas não é fácil. Na vida cultural brasileira verificamos a existência de dois tipos de artistas: os que têm coragem de chutar cachorro vivo e os que apenas chutam cachorro morto. Quando se trata de criticar autoridades e políticas culturais, são poucos aqueles artistas que se atrevem a fazê-lo de público. Fazem-no entre amigos, em rodas de bar. Mas se reservam publicamente com medo de represálias. Muitas das oportunidades encontradas no mercado de trabalho são oferecidas pelo poder público, por empresários, por governantes e por órgãos públicos de fomento. Artistas, nessas condições, temem fazer críticas a seus eventuais futuros apoiadores. Aqueles que optam por chutar apenas cachorro morto acabam por se mostrarem covardes.

Na ”Sinfonia das Diretas”, de 1984, mais de 300 buzinistas se expuseram corajosamente sob o tacão da ditadura militar. Guardo, em meus arquivos pessoais, todas as fichas com os nomes daqueles participantes. Até o início dos anos 90 a participação no evento era considerada um ato subversivo comprometedor e, assim, muitos dos buzinistas não se sentiam à vontade na divulgação de seus nomes. Hoje eles se orgulham do feito e gostam de ostentar a ação. Em Brasília, atualmente, é comum encontrarmos pessoas que, embora não tenham participado – sei eu – da Sinfonia das Diretas, dizem tê-lo feito, com o objetivo de se passarem por heróis da resistência ou, no caso de militantes de esquerda, para não serem consideradas omissas. O mesmo fenômeno aconteceu com o “Auto do Pesadelo de Dom Bosco”. Corajosamente, cerca de 100 artistas se expuseram nas ruas, integrando o elenco voluntariamente, sem cachês. Quando o governador foi preso, alguns novos artistas, que antes se mantinham silenciosos e distantes, se ofereceram para participar.

É bom lembrar o seguinte às novas gerações: a todo momento vivemos períodos de luta popular que, dentro de décadas, serão considerados momentos históricos que preencherão páginas importantes da história do Brasil. Bastante frustrante e entristecedor é alguém dar-se conta de que não foi partícipe e protagonista da luta popular que, vitoriosa, acabou por tornar-se momento histórico. A sensação de covardia se mescla à de arrependimento: o frustrado se lembra de que, omitindo-se, foi contemporâneo daquela luta que aconteceu à sua volta. O artista que consegue boa projeção e visibilidade em sua carreira, passa a ter uma importante responsabilidade. A respeitabilidade que ele adquire tem que ser utilizada em favor do interesse público e do interesse das gerações futuras. O lugar que ele ocupa, então, tem que ser transformado em tribuna de clamores, protestos e propostas. Os eternos donos do poder não o amedrontam. Ao contrário, os poderosos se sentem amedrontados e até mesmo cuidam de não arriscarem retaliações que podem escandalizar e derrubá-los.

Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositor? Quais são os maestros que mais têm intimidade com sua obra?

Jorge Antunes: Não tenho admiração especial por nenhuma das orquestras brasileiras atuais. Por elas tenho apenas respeito e sentimento de solidariedade para com os músicos que a integram, em razão da escassez de mercado de trabalho. A música contemporânea de hoje encontra pouco espaço nas programações dessas orquestras. Políticas culturais equivocadas norteiam seus dirigentes. A busca desenfreada e burra por novos públicos faz com que trilhas sonoras do cinema norte-americano tenham espaço nas programações. O arranjo, ou desarranjo, de música popular comercial também se faz presente nas programações com roupagens eruditescas. Fora isso, o eurocentrismo e o repertório dos séculos XVIII e XIX continuam prevalecendo nas programações. Com relação aos maestros, todos eles têm intimidade com minha obra, mas é uma intimidade teórica ou virtual: conhecem e leram minhas partituras, mas poucos as programam. A maioria já regeu alguma obra minha, mas de modo muito esporádico. Para citar nomes, arrisco-me a lembrar-me apenas de dois maestros brasileiros que têm grande intimidade com minha obra e que a difundem e programam sempre que há oportunidade para tal. São o maestro José Maria Florêncio, que hoje vive e trabalha na Polônia, e o maestro Jorge Lisbôa Antunes, meu filho, que dirige a Orquestra Ars Hodierna, em Brasília.

No exterior existem mais maestros íntimos com minha obra do que no Brasil. Entre os estrangeiros eu mencionaria o italiano Gianpiero Taverna, o francês Gilbert Amy e o espanhol Arturo Tamayo.

Prestes Filho: Como professor, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Entre estes, existem seus discípulos?

Jorge Antunes: Na UnB, onde lecionei, durante 38 anos, composição musical, contraponto e acústica musical, a clientela de música foi sempre muito especial. Não existe no Distrito Federal, e nunca existiu, um bom mercado de trabalho para músicos. A vida profissional de músico acaba se resumindo às oportunidades oferecidas pela Escola de Música, pelas poucas orquestras, pelas bandas de música militares, pelos bares e restaurantes, pelo Clube do Choro, e por aí vai. Quando algum jovem se interessa em estudar no Departamento de Música, é porque está sonhando em ser um bom instrumentista para prosseguir no exterior, no Rio, em São Paulo, em alguma orquestra. Enfim, está pensando fugir de Brasília. Ou então sonha em seguir a carreira acadêmica. Ou então, é porque sonha em fazer música para a sua Igreja, ou então se submeter ao claustro de uma banda militar. É coisa rara encontrarmos um jovem que sonhe em seguir os caminhos trilhados por Villa-Lobos, por Francisco Mignone, por Camargo Guarnieri ou por mim. Aposentei-me em 2011. Mesmo afastado da sala de aula continuei vinculado à pós-graduação do Departamento de Música, porque fui credenciado como Pesquisador Sênior, para orientar teses e continuar minhas pesquisas acadêmicas. São poucos os hoje consagrados novos regentes e compositores de música erudita que formei. Tive alunos brilhantes que depois se destacaram na carreira musical. Cito alguns: Silvio Barbato, Emilio de Cesar, Rodrigo Lima, Hamilton de Holanda, Rogerio Caetano, Ney Rosauro, Roberto Corrêa, Luis Roberto Pinheiro, Mario Lima Brasil, Jorge Lisboa Antunes e Jonas Correia. Muitos outros ex-alunos integram, hoje, a nata da música popular do Distrito Federal e o corpo docente da Escola de Música de Brasília, graças à formação clássica e de música contemporânea que receberam. Alguns desses meus ex-alunos: Paulo André, Jaime Ernst Dias, Manuel Carvalho e Renato Vasconcellos.

Nunca dirigi os caminhos estéticos de meus alunos. Após a identificação de suas potencialidades e de seus talentos, sempre tratei de dar-lhes elementos e conhecimentos musicais que pudessem fazer aflorar seus objetivos pessoais e concretizar seus sonhos de realização como músicos profissionais.


LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).