Redação

Aprovada em agosto deste ano pela gestão do presidente Joe Biden, a Lei de Redução da Inflação dos EUA causou furor em aliados europeus de Washington.

No cerne da indignação estão críticas de que a lei tem um viés protecionista capaz de prejudicar economias europeias, em especial países com tradição no setor automobilístico, como França e Alemanha. O motivo é que a lei estimula o que a gestão Biden chama de “compre americano”, fornecendo incentivos fiscais a quem optar por comprar carros elétricos produzidos em território americano. Políticos europeus temem que a medida possa gerar uma debandada de empresas, principalmente montadoras, que migrariam da Europa para os EUA.

Recentemente, eurodeputados pediram uma resposta dura a Washington, e em outubro o presidente francês, Emmanuel Macron, apresentou a proposta que chamou de “Ato Europeu de Compra”, em resposta a Washington. O acirramento de tensão se torna ainda mais crítico pelo fato de a Europa ter apoiado os EUA em sua política de sanções contra a Rússia, decisão que desencadeou uma crise energética e inflacionária, que afetou com muito mais gravidade economias europeias. Com vários países da Europa à beira da recessão econômica, a lei aprovada pela gestão Biden agravou a situação, e muitos analistas já discutem a possibilidade de uma guerra comercial entre EUA e Europa.

Em entrevista à Sputnik Brasil, o professor de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Williams Gonçalves ressalta que o risco de guerra comercial entre Washington e o bloco europeu é real, e destaca que a raiz do impasse é a ascensão da multipolaridade no sistema internacional.

“É muito provável que isso [a guerra comercial] aconteça. A estrutura do sistema internacional mudou muito nos últimos anos, a erupção da China como grande potência econômica, como uma vanguarda tecnológica, e a imantação da China em relação aos seus vizinhos na Ásia-Pacífico é uma coisa que mudou a estrutura do sistema internacional. Não temos mais um sistema unipolar.”

Gonçalves destaca que, encerrado o período pós-Guerra Fria, iniciou-se “uma nova etapa da evolução do sistema internacional”, que trouxe uma concorrência indesejada para os EUA.

“Agora, os Estados Unidos têm uma dificuldade muito grande de aceitar essa ideia de ser uma grande potência entre outras grandes potências. Aquela posição que adquiriu após a Segunda Guerra Mundial, ela já se perdeu e os americanos não aceitam isso, não querem aceitar. E tudo farão para recuperar essa posição.”

Segundo ele, essa busca de Washington pela retomada do protagonismo perdido “tem levado a uma relação muito tensa com a China, em determinados momentos, e com a Rússia”.

“As relações com a Rússia são as piores possíveis, uma vez que não há a menor dúvida de que os norte-americanos empurraram os ucranianos para uma armadilha. Portanto, isso tornou as relações dos Estados Unidos e da OTAN com a Rússia muito ruins.”

Já em relação à Europa, Gonçalves afirma que não há uma contenda militar com os EUA, mas tensão diante da perda de influência.

“Há uma questão econômica importante, porque os norte-americanos já não exercem, nem podem exercer mais, o domínio econômico que durante muito tempo exerceram sobre a Europa. A Europa, hoje, tem a alternativa que é a China. O projeto da China da Nova Rota da Seda inclui os europeus. E os europeus consideram isso uma coisa interessante, de modo que aquela harmonia que havia entre EUA e Europa tende a se perder, a ser ultrapassada.”

Panorama internacional

Gonçalves diz não ter dúvidas de que a Lei de Redução de Inflação dos EUA é uma medida protecionista, que “significa um descompasso entre o discurso liberal de defesa do livre comércio e a prática norte-americana”.

“Isso também não é novo, esse foi sempre o comportamento dos EUA. Ao mesmo tempo em que, para fora, defendem o livre comércio; dentro, eles praticam o protecionismo. Podemos dizer que essa é a grande diferença entre a hegemonia econômica norte-americana e a hegemonia inglesa econômica no século XIX. Os ingleses eram autenticamente livre cambistas, ao passo que os EUA não”, explica Gonçalves.

Ele acrescenta “que o protecionismo norte-americano afetará as relações econômicas, comerciais e os investimentos com seus parceiros” e destaca que os EUA, atualmente, vivem uma grande crise, causada pelo “desequilíbrio na estrutura de distribuição de renda”.

“Há o empobrecimento muito forte de uma parte significativa da população, as circunstâncias internacionais não favorecem os EUA. Isso [o protecionismo] faz parte da reação dos EUA. Os dirigentes norte-americanos se veem diante do desafio de recompor a economia, reequilibrar a sociedade norte-americana e, ao mesmo tempo, retomar a hegemonia, o que é muito difícil, mas naturalmente eles vão lutar para alcançar isso”, destaca Gonçalves.

Questionado se Washington está dando as costas aos seus aliados, Gonçalves ressalta que “os EUA sempre priorizaram seus interesses”, e destaca que a diferença é que antes “os aliados não tinham alternativas”.

“Isso era uma coisa muito evidente, inquestionável, enquanto houve a Guerra Fria. A posição dos EUA e seus interesses se estendendo, sendo confundidos com os interesses de todos os aliados foi uma tônica, todos se submeteram à estratégia dos EUA. Isso sofreu algumas mudanças com o fim da Guerra Fria, com a dissolução do bloco soviético e da própria União Soviética. Deu alguma autonomia maior para os aliados, e essa autonomia, essa flexibilidade política, aumentou ainda mais com a ascensão da China. Portanto, os interesses dos EUA não podem mais ser confundidos automaticamente, sistematicamente, com os interesses de todo o mundo”, explica Gonçalves.

Segundo ele, essa nova estrutura multipolar do sistema internacional “permite que cada um zele mais pelos seus interesses, e não se submeta a um programa maior que, teoricamente, salvaria a todos, daria proteção a todos”.
“Isso é próprio de um sistema internacional multipolar, os principais atores definem seus objetivos nacionais e procuram atuar em seguimento a ele. Isso torna as relações econômicas internacionais muito mais complexas. Porque havendo alternativas, é possível negociar melhor seus interesses nacionais. Então, quando os europeus hoje reagem com certa indignação às medidas protecionistas dos EUA, eles o fazem porque sabem que há alternativas, que eles não estão mais dependentes única e exclusivamente dos EUA. E também há espaço para uma retaliação. Se os EUA adotam políticas protecionistas, porque os europeus também não podem adotar?”, explica Gonçalves.

Gonçalves acrescenta que o atual cenário também “mostra um relativo declínio dos EUA, que já não podem tomar medidas altruístas por ter de cuidar de sua própria sobrevivência”.

“Os norte-americanos não têm muita alternativa. Se querem se manter como uma potência relevante, têm de ajustar a sua própria economia, sua própria sociedade”, diz Gonçalves, acrescentando que “a democracia norte-americana também já não é mais a mesma”.

“Ela [a democracia nos EUA] não está ameaçada de fora. Não é nenhuma invasão, são os próprios norte-americanos que hoje lançam desafios, como Donald Trump fez e seus seguidores continuam fazendo. Portanto, a crise norte-americana é uma crise real. Não resta aos EUA senão fazer tudo para recuperar sua posição. E isso, naturalmente, implica nesse protecionismo, nesse egoísmo e, consequentemente, em relações cada vez mais difíceis com aqueles que até então eram ‘os amigos do peito'”, diz Gonçalves.

Fonte: Sputnik

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