Por Miranda Sá

“Eu faço qualquer coisa, te dou tudo que tenho, oh bruxa, por um pedacinho de paz que um dia eu perdi” (Raul Seixas)

Na sua comentada obra “Totem e tabu”, Freud estuda as primeiras hordas humanas e sugere três formas de pensamento: animismo, religioso e científico. O primeiro, tem a visão cosmogônica de entes superiores não humanos, animais, plantas, objetos inanimados ou fenômenos da natureza.

Mais tarde, nos albores da civilização, os medos diante do sobrenatural “se destacam nos nevoeiros das almas” como descreve Oliveira Martins no seu livro “Sistema dos Mitos Religiosos”. Assim criaram-se deuses por temor à floresta, à escuridão, aos raios e os trovões, no resguardo da caverna, na reverência ao sol e aos mortos.

As primeiras organizações sociais apresentaram o poder político exercido pelas mulheres, que desempenhavam um papel importante na administração social, respeitadas e admiradas sem impor-se pela força. Era o regime Matriarcal, cuja existência foi sugerida no século XIX pelo arqueólogo britânico Sir Arthur Evans, estudioso da Civilização Minoica.

Mais tarde, pesquisas arqueológicas da chamada Era do Gelo (40.000 – 10.000 a.C.) descobriram grande quantidade de estátuas femininas conhecidas como vênus ou Estatuetas de Vênus, identificando-as como representações da Deusa mãe.

Nas organizações sociais avançadas dos antigos impérios, as mitologias de diversos povos também consagram os mitos femininos da deusa-mãe, das amazonas ou mulheres guerreiras, valquírias, erínias, harpias e a deusa grega da sabedoria, inteligência e da guerra, Atena.

O cristianismo nascente, como religião acolhedora, caridosa, solidária e libertadora, contrapôs-se às práticas pagãs extravagantes realçando o papel da mulher na vida de Jesus de Nazaré.

São icônicas as três marias citadas nos evangelhos como participantes da pregação do Cristo, do seu suplício e ressureição. Não somente a mãe, Maria, como Maria Madalena, Maria Betânia, irmã de Lázaro, e Maria, mãe de Tiago, foram no princípio igualmente santificadas.

Entretanto, o cristianismo vitorioso, romano e imperial, sincretizou-se com outras religiões pagãs e, em defesa de um clero copiado do mitraísmo, apagou os registros do apostolado feminino contidos nos chamados evangelhos sinóticos.

A hierarquia eclesial fez mais. Desprezou a personalidade de Madalena, tratando-a como se fora uma prostituta ou endemoniada, insinuação machista motivada pelo medo de ver exaltada a importância dela entre os fundadores do cristianismo.

Na idade Média, a loucura fanática e inquisitorial passou a condenar a mulher independente, praticante de terapias fitoterápicas, ou como obstetra, acompanhando a gravidez até o parto. Foram confundidas com as bruxas persistentes na crença pagã, versão feminina dos xamãs. Então, perseguiu-as, torturou-as, e levou-lhes à fogueira.

Como restos caricatos dos tribunais da Inquisição, a América do Norte colonial registrou no século 17, para vergonha do povo norte-americano, os julgamentos das bruxas de Salem, em Massachusetts, processando mulheres acusadas de bruxaria. Este fato inspirou a intelectualidade dos Estados Unidos a chamar de “Caça às Bruxas” a inquisição macarthista que perseguiu os liberais e antifascistas, incriminando-os antidemocraticamente como se fossem comunistas.

A estupidez autoritária não compreende que não se mata uma ideia ou uma prática, sacrificando o seu agente. Foi assim que Hitler suicidou-se no seu bunker berlinense e o stalinismo soçobrou com o Muro de Berlim.

Entristece-me em assistir agora o choque dos extremismos, incentivado pela inépcia intelectual de quem não devia fazê-lo. Espero que este cenário não nos leve a uma “caça às bruxas”, porque “direita” e “esquerda” não representam uma ideologia estável, são apenas sinais de união grupal como inquisidores de todos os tempos.


MIRANDA SÁ – Jornalista, blogueiro e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Trabalhou em alguns dos principais veículos de comunicação do país como a Editora Abril, as Organizações Globo e o Jornal Correio da Manhã. Recebeu dezenas de prêmios em função da sua atividade na imprensa, como o Esso e o Profissionais do Ano, da Rede Globo.