Por Maya Angelou –
“[…] Você queria me ver destroçada?
Com a cabeça curvada e
Os olhos baixos?
Ombros caindo como lágrimas,
Enfraquecidos pelos meus gritos
De comoção?
Minha altivez te ofende?
Não leve tão a sério
Só porque rio como se tivesse
Minas de ouro
Cavadas em meu quintal.
Você pode me fuzilar com
Suas palavras,
Você pode me cortar com seus olhos,
Você pode me matar com o seu ódio,
Mas ainda, como o ar, eu vou me
Levantar […]
(Maya Angelou)
Textos escritos nos dias finais do ano convidam à nostalgia das retrospectivas, dos balanços sobre ganhos e perdas do ciclo que termina e prognósticos sobre o ano que se avizinha.
Esta coluna foi inaugurada no dia 06 de maio de 2021.
Com o propósito de discutir questões relevantes da atualidade que se articulam com o Direito, foram abordados temas como a persistência do racismo, o genocídio indígena, a compulsoriedade da vacinação, a descriminalização do aborto, a desigualdade social como projeto, fake-news em saúde até a crítica à atuação das instituições num quadro de recrudescimento de práticas autoritárias.
De forma subjacente a esses debates que ocuparam a agenda do ano de 2021, estão algumas concepções sobre o próprio Direito. Seria o Direito, num quadro institucional como o que vivenciamos, ainda uma forma eficaz de avanço na construção da justiça social e, em especial, de acesso das minorias vulnerabilizadas, dos “condenados da Terra”, no título da obra imortal de Fanon, ao projeto de sociedade desenhado pela Constituição de 1988?
Quais os avanços e retrocessos resultantes da luta pelo Direito, nesse ano tão difícil e doloroso e o que se pode dele esperar, no ano que se avizinha?
É certo que não se pode reduzir a expressão do Direito ao que dizem os Tribunais, mas num ano marcado por muitos conflitos e grande litigiosidade em temas cruciais, a face jurisprudencial do Direito assumiu uma extraordinária relevância.
É preciso destacar que o Supremo Tribunal Federal, durante todo ano de 2021, teve importante atuação em temas relacionados à pandemia da Covid-19, determinando a adoção de providências imprescindíveis em face de omissões negacionistas dos responsáveis pela condução das políticas de enfrentamento à pandemia.
Assim foi com a explicitação sobre a responsabilidade concorrente dos entes federados, a autorização para uso emergencial de vacinas aprovadas por agências reguladoras internacionais, a priorização da vacinação de indígenas que moram em cidades, entre outros temas.
No jurisprudência criminal, em 2021, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a suspeição do juiz Sérgio Moro nas ações penais contra o ex-Presidente Lula, declarando a Operação Lava-Jato como “o maior escândalo judicial de nossa história”.
Tal julgamento teve importância monumental para o desfazimento, ao menos em parte, dos efeitos deletérios da mencionada “Operação”, ao permitir que suas práticas e concepções, fossem finalmente criticadas, expostas e desautorizadas, como modelo de exercício indevido, abusivo e espúrio do poder punitivo estatal.
Não tardou que a “Operação” se revelasse como projeto de aniquilação de um determinado partido político, além de orientar-se à obtenção de vantagens e ganhos pessoais por seus protagonistas, autoproclamados “combatentes” da corrupção.
A declaração da suspeição do juiz Sérgio Moro significou, sem dúvida, uma vitória do Direito, rumo à retomada de um marco jurídico constitucionalmente adequado à aplicação da lei penal e processual penal
Todavia, não é possível ignorar que esse escândalo só tomou as proporções a que chegou porque contou com o respaldo de amplos setores do sistema de justiça.
A errônea concepção do juiz “combatente” ainda habita os corações e mentes como modelo válido de exercício da jurisdição para muitos. A esses, torna-se ainda necessário aprender com as histórias de Torquemada, Roland Freisler e Andrzej Vyshinsky, entre outros “juízes” políticos que o tribunal da história não poupou.
No campo dos direitos sociais: trabalho, previdência e serviço público, com algumas poucas exceções, a maior parte das decisões da Suprema Corte foi contrária aos interesses dos trabalhadores, com ênfase no tema das terceirizações, em que a precarização das relações trabalhistas tem recebido a chancela judicial da mais alta corte do país.
Um julgamento muito aguardado e que, no entanto, foi interrompido sem solução foi o da tese do marco temporal, no qual se discute qual a referência que deve balizar validamente a ocupação dos territórios dos povos originários. A indefinição quanto ao tema causa insegurança jurídica e favorece um clima de agudização dos conflitos e invasões em terras indígenas por todo país.
Nos meses finais de 2021, vieram a lume duas decisões de ampla repercussão: a primeira, liberando a prática do orçamento secreto e a segunda, suspendendo uma liminar em Habeas Corpus, invocando como argumento a “confiança da população na credibilidade das instituições públicas”, ou seja, o clamor público. A decisão de suspensão da liminar em Habeas Corpus é particularmente preocupante pois, como muitos doutrinadores do processo penal demonstraram, o instrumento processual utilizado – a Lei nº 8.437/92 – não se aplica ao processo penal.
A fragilização do Habeas Corpus remonta a períodos autoritários do passado recente do Brasil e da América Latina e deve causar perplexidade a todos quantos reconhecem o direito penal e o direito processual penal como limites ao poder punitivo estatal, em tempos de normalidade, ao menos.
Essa pequena amostra das decisões da Suprema Corte do país, no ano de 2021, demonstra que a luta é o pressuposto para a manutenção das garantias do cidadão em face do poder punitivo estatal, dos direitos sociais das massas trabalhadoras, dos indígenas e dos povos originários, sem a qual tais direitos jamais serão reconhecidos e assegurados.
A despeito disso, mesmo grandes mobilizações sociais, como no caso dos povos indígenas no julgamento do marco temporal, nem sempre encontram eco nas instituições do sistema de Justiça
Todo esse quadro, no crepúsculo de mais um ano, corrobora a noção de que o Direito, como produto social historicamente determinado, não poderia mesmo se desviar das tendências que estruturam a sociedade, as forças políticas, o Estado e a economia nesse trágico ano de 2021: um ano marcado por mais de 600.000 mortes, pelos efeitos de uma prolongada pandemia, escassez econômica, aprofundamento das desigualdades e ameaça de recessão, fatores que acirraram ainda mais a luta de classes, repercutindo de forma inclemente nos campos onde se travam as “batalhas jurídicas”.
Nesta coluna, ao longo de 2021, buscamos refletir sobre o Direito, procurando, talvez, o seu Avesso. Se o Direito cada vez mais tem se manifestado como arma de guerra, como afirmam, acertadamente, os estudiosos do Lawfare, buscamos um Direito do amor, da paz, da convivência, da diversidade e da justiça social para além das classes. Querer a pacificação implica em estar pronto para guerra, contudo.
Com esse espírito, aguardamos 2022 e convidamos aqueles e aquelas que se propõem a pensar o Direito de outra maneira, por seu “Avesso”, que o façam sem descuidar da utopia e com a força da poesia de Maya Angelou:
“Você pode me matar com o seu ódio, mas ainda, como o ar, eu vou me levantar”.
A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando.
Publicado inicialmente no Brasil de Fato. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
Tribuna recomenda!
NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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