Por Kakay –
“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas.
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.”
–Sophia de Mello Breyner Andresen, em “O Velho Abutre”.
Sou, por princípio e a princípio, contra o instituto da prisão. Salvo a necessidade absoluta de tirar do convívio da sociedade cidadãos que a coloquem em risco real, a pena de prisão deveria ser abolida. No Brasil, nós temos um sistema carcerário desumano, que reduz a pessoa a uma condição abjeta e que não respeita os direitos básicos do detento. Escrevi, dezenas de vezes, que, quando uma pessoa é presa, ela perde a liberdade, mas deveria manter preservados todos os seus outros direitos, começando pela dignidade, inerente a todos.
A direita e a ultradireita sempre fizeram pouco caso da miserabilidade em que se encontram os presídios e cadeias brasileiras. Funcionava a regra de que “bandido bom, é bandido morto” e que nós, que nos preocupamos em dar dignidade aos prisioneiros, éramos cúmplices de uma bandidagem com a roupagem de preservar os direitos humanos. Na verdade, essa elite burra e vulgar não enxerga o negro, o pobre e o periférico, as grandes vítimas do perverso sistema carcerário, como detentores de direitos e nem como seres humanos. Por isso, talvez, direitos humanos sejam uma ficção para esse grupo.
No Brasil, como disse o mestre Chico Buarque na entrega do prêmio Camões em Lisboa, nós trazemos nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, mas a parte de cima do prédio desigual e capenga, que é a sociedade brasileira, se julga feliz por se sentir herdeira de sangue dos açoitadores. Triste, mas parafraseando o poeta baiano Trasíbulo Ferraz, “a vida dá, nega e tira”. A prisão dos mais de 1.500 extremistas em seguida ao 8 de Janeiro, a maioria branca e com boa condição financeira, fez um bem para a discussão do sistema carcerário. Pela primeira vez, esses, que nos importunavam e nos desprezavam, olharam para as condições desumanas dos presídios.
Reclamações antigas dos “defensores dos direitos humanos” passaram a fazer parte da cartilha fascista. Nessa hora, existe, ou passa a existir, um direito mínimo de cobrar condições de dignidade para os que nunca olharam para as mazelas e para os abusos sedimentados. Remeto-me a Bertolt Brecht, no poema “Os Esperançosos”:
“Pelo que esperam?
Que os surdos se deixem convencer
E que os insaciáveis Lhes devolvam algo?
Os lobos os alimentarão, em vez de devorá-los!
Por amizade
Os tigres convidarão
A lhes arrancarem os dentes!
É por isso que esperam!”.
Bolsonaro vem cometendo uma série de ações, ao longo dos últimos anos, que vão, inexoravelmente, levá-lo à prisão. Ele insistiu em abusar do poder da Presidência e cometeu inúmeros atos pelos quais será chamado à responsabilidade. É assim que funciona numa República democrática. Ele deixou o governo e se refugiou nos Estados Unidos. Voltou há menos de 1 mês e já teve que depor 2 vezes à Polícia Federal –deve depor ainda mais, pelo menos, uma vez nos próximos dias.
Na 4ª feira (3.mai.2023), o Brasil acordou com a informação de que a Polícia Judiciária cumpriu mandado de busca e apreensão na casa do ex-presidente, chegando a levar o celular dele. Também foram efetuadas prisões preventivas de pessoas muito próximas a ele. Em um 1º momento, deve-se olhar a necessidade dessas detenções com natural preocupação para que não ocorram excessos.
A notícia é de que a apuração se dá por ter o bando incorrido em infrações de medidas sanitárias preventivas, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistema de informação e corrupção de menores. Por incrível que pareça, boa parte das pessoas consideram exageradas as providências determinadas pelo Supremo Tribunal Federal. É necessário olhar essa investigação no contexto em que ela se insere.
Ora, esse é um desdobramento da tragédia a que fomos submetidos pelo negacionismo bolsonarista. Pelo menos 1/3 dos 700 mil mortos pela covid-19 poderiam estar vivos. Em nome desses mortos insepultos, dos milhões de pais, mães, irmãos e amigos que choram perdas desnecessárias, será que é possível considerar esse um crime menor? Se for verdade que houve manipulação dos dados do Ministério da Saúde, é de uma gravidade inaudita.
Não bastasse a postura de induzir em erro a massa bolsonarista ignara e inculta, e pregar contra a vacina, levando o país ao caos e a um número desastroso de mortos, a maior autoridade do Brasil ainda fraudou o sistema de saúde? Essa praga chegou a se tornar uma seita. Vejam que parte dos 294 presos que estão na Papuda, por causa da tentativa frustrada de golpe no 8 de Janeiro, não recebem visitas, pois se negam a vacinar. Essa foi a lavagem cerebral a que foram submetidos os seguidores desse ex-presidente que cultua a morte, a tortura e o dinheiro.
É absolutamente essencial não defendermos a postura de negar os direitos que marcou a era Moro-Bolsonaro. A barbárie teria vencido se usássemos os mesmos métodos que sempre criticamos. Mas, ao defender que todos os direitos constitucionais estejam, obviamente, à disposição dos investigados, especialmente o da presunção de inocência, o do devido processo legal e o da ampla defesa, não podemos deixar de cerrar fileiras e acompanhar, com lupa constitucional, a evolução da investigação desse ex-presidente que demonstrou ser um serial killer que se julgava acima do bem e do mal.
Na campanha presidencial, presenciei as pessoas cantando nas ruas com uma alegria incontida: “Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé. Manda essa tristeza embora. Basta acreditar que um novo dia vai raiar. Sua hora vai chegar”.
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.
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