Por Lincoln Penna

Deutschland über alles (A Alemanha acima de tudo) foi uma consigna durante o processo de unidade alemã (Das Lied der Deutschen), mas foi apropriada pelos ideólogos do nazismo e acabou sendo propagandeada por ocasião da política do chamado “espaço vital”, geopoliticamente representado pelo nome em alemão de Lebensraum, responsável pela blitzkrieg ou guerra relâmpago. Ela foi desencadeada e resultou no início da Segunda Guerra Mundial numa rápida ocupação de territórios europeus.

O slogan Brasil acima de tudo não é positivamente uma mera coincidência.

Pensar assim é considerar que a comunicação do então secretário de cultura Roberto Alvim imitando Goebbels, ideólogo nazista, foi uma ingênua representação. O zelo em afastar proximidades com o que nos incomoda leva quase sempre a dar corda a intuitos que visam objetivos que não podem ser confessáveis. Nada pior do que conviver com lembranças nefastas. Elas são sempre impróprias e indesejáveis.

Mas há também algo que se encontra por trás da expressão que serviu de alento aos alemães da unificação e agora ao fraseado de Bolsonaro quando conclui seus arroubos antidemocráticos. O “Brasil acima de tudo” não consegue mascarar o sentido de um poder que se sobrepõe as representações de uma sociedade que deve primar pelo equilíbrio dos poderes. Este Brasil acima de tudo não é o Brasil do povo acima de tudo e sim de um falso poder que se julga capaz de imprimir uma ordem que persegue o exercício do domínio absoluto.

Tenho dito que o fascismo em suas diversas manifestações deve ser situado em dois planos, o da representação histórica original do entre-guerras, enquanto fato histórico no tempo e no espaço; e o fascismo como fenômeno político, que pode se expressar quando as crises do capitalismo exigem um poder mais resoluto para supostamente estancar as suas trágicas implicações. Neste sentido, estamos vivendo tempos em que a conjugação da crise cronificada do sistema do capital tem fomentado saídas autoritárias centradas em fórmulas de contenção das massas mais afetadas pelo desenrolar do quadro caótico em que vivemos.

Não é, portanto, exagero dizer que podemos estar na antessala de uma nova experiência de modelo totalitário caso não enxerguemos o perigo dessa ameaça. Alertar para essa situação não é uma vaga manifestação de teoria da conspiração, mas uma reflexão que deve ser considerada como um sinal dos tempos em que vivemos marcados pela sucessão de incertezas, terreno fértil para fazer prosperar essa ameaça, que nos ronda sem que por vezes nos demos conta de sua presença.

Afinal, foi assim na Alemanha destroçada pela Grande Guerra de 1914-1918, a que conhecemos como Primeira Guerra Mundial, que os nazistas souberam explorar o sentimento de humilhação depois da derrota e as consequências funestas para o povo alemão. Ao atiçar a autoestima de uma população desiludida com os políticos tradicionais de todas as tendências, o nazismo tendo a frente Hitler elegeu os responsáveis pela debacle germânica, entre eles os comunistas, é claro, e os liberais, e se apresentar como restaurador dos tempos gloriosos da pátria alemã.

Em tempos de crises agudas e de perdas sofridas existe a tendência ao desespero e a aceitação de soluções inspiradas pelo emocional, seja no caso das pessoas como também dos povos. Neste último, o que ocorreu na Alemanha foi exatamente o peso do fator emocional de modo a deixar de lado a racionalidade, a primeira das reações humanas que se torna descartável. Com isso, o bom senso dá lugar ao imediatismo, atitude geralmente motivada pelo inconformismo que entra em cena.

O Brasil está longe desse cenário.

O total desapego ao equilíbrio e as tratativas de recomposição pelas vias diplomáticas, situação que marcou a Alemanha do final da guerra até a ascensão do nazismo com a implantação do IIIº Reich, portanto entre os anos de 1919 e 1933/34, não se encontram entre nós. Os problemas de ordem econômica e política, sem deixar de mencionar as sequelas no campo social, não são de pequena monta, porém, em nada se compara ao caso alemão do entre-guerras.

Contudo, o panorama mundial também é diferente, porquanto antes as soluções eram adotadas nacionalmente, ainda sob certa autonomia nacional. Haja vista o emprego do Estado interventor por ocasião da grande depressão de 1929. Em todas as grandes economias capitalistas liberais ou já totalitárias da época, esse recurso foi usado guardando as singularidades de cada país, para minorar os efeitos da crise. Assim, EUA e o seu New Deal, bem como a Alemanha e a Itália lançaram mão do mesma política para pôr ordem no desastroso caos econômico e financeiro decorrentes da quebra da Bolsa de Nova York.

Presentemente, as economias mundializadas no que diz respeito ao grau de integração a que chegaram, têm uma gestão igualmente mundializada. As eventuais ameaças localizadas em determinadas regiões do mundo são imediatamente objeto de medidas visando conter sua possível proliferação no sistema global. A velha ameaça das internacionais socialistas e comunista hoje são rebatidas pela construção de uma verdadeira internacional do capital. Aliás, existem iniciativas de setores da extrema direita que se organizam com esse propósito. Embora seja desnecessário.

Façamos como os bons intérpretes de conjunturas de outros tempos. Jamais esquecer nas análises do que se passa em cada canto do mundo, posto que nada acontece isoladamente. As interferências externas existem não por acaso. Mais do que nunca hoje em dia elas obedecem a estrategistas que se ocupam 24 horas por dia para examinarem o quadro político internacional, e países que ostentam posições geopolíticas e recursos de grande valor, como o Brasil, tem sido sistematicamente alvos de um permanente acompanhamento do que se passa em suas atividades políticas, mormente em períodos eleitorais, as vezes decisivos para o seu futuro, tal como se revela em relação às próximas eleições presidenciais entre nós.

Em suma, o presidente Bolsonaro eleito em 2018 não obteve essa vitória apenas para impedir a permanência do PT no governo. Se o seu mérito foi o de desbancar uma corrente política desgastada em virtude de tantas denúncias valendo-se de uma força tarefa juridicista, empresarial, midiática e movida por grossos interesses de dentro e de fora do País, seu objetivo consistia em desmontar o Estado nacional para servir aos apetites internacionalizados do capital privado. E isto ele tem conseguido ao encarnar o eterno retorno ao culto ditatorial.

Talvez possa ser descartável. Talvez ceda o lugar a quem tenha mais habilidade em dar continuidade e consequência ao projeto de desvincular o Brasil de sua rota a caminho de uma verdadeira soberania nacional, pois este permanece sendo o foco principal. Mas, talvez o eleitorado mais consciente, sobretudo de origem popular, diante do fracasso assumido no campo dos direitos trabalhistas, usurpados pelos rentistas a serviço do sistema financeiro mundial, venha a optar pela dignidade nacional revogando as perdas acumuladas.

Quem sabe, o povo se coloque por conta própria acima de tudo e escolha seus líderes sem a necessidade de apelar para aventureiros de plantão.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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