Por Ricardo Cravo Albin

É sempre assim: a corda arrebenta no mais fraco, ensinava Mestre Gilberto Freire, acolitado de imediato pelo não menos mestre Darcy Ribeiro. Ao se referirem aos povos indígenas. Poderiam ser eles, a meu ver, os pobrinhos apontados por São Francisco de Assis.

Há dois meses que venho escrevendo aqui, com grande angústia (e quem me lê sabe disso) sobre os “pandesastres” para as populações menos favorecidas, ou semiabandonadas, como as que habitam nas favelas, e mesmo em comunidades populares. Pois hoje ergo minha indignação para o possível massacre da talvez menos aquinhoada população pelo poder público, os indígenas. Quero logo declarar o que todos nós moralmente temos a reconhecer, foram eles os donos desta Terra brasílica. Invadida e vilmente saqueada pelos europeus, nós, os brancos, que até hoje – e em especial agora – bafejam os indefesos com nosso hálito que solta fogo como os dragões antigos dos tempos da carochinha para assustar as crianças. Os mesmos dragões a cuspir fogo pelas ventas brutais que ameaçam mais do que nunca. E o pior, todos vemos, sabemos e estamos paralisados, como lagartixas acovardadas que nada fazem.

Cito aqui, a comovente entrevista dada ao repórter William Helal Filho (do Globo) pelo ambientalista indígena Ailton Krenak, recolhido em sua modesta casa no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Atentem que fui buscar vítimas mais próximas a nós que as centenas de tribo que povoam a grande Floresta Amazônica. Sua primeira frase foi daquelas que Darcy Ribeiro consideraria uma verdade bíblica – “a pandemia é a resposta do planeta à sua destruição pelo bicho-homem. A única saída é mudar a sociedade”. E completa triunfalmente o guru indígena com uma comparação que poderia ser proferida por um dos raros heróis do Brasil, o Marechal Rondon, missionário do bem, “É como um anzol nos puxando a consciência”. Desde o rompimento da barragem que sugou o Rio Doce, os moradores da aldeia Krenak deitam olhos de pura misericórdia por sobre seu leito infértil como quem vela parentes assassinados. O líder Krenak é duro com os malfeitores de suas terras e águas, que provocaram em sua visão filosófica a tragédia da pandemia.

Acabei de ler seu livro, de grande sucesso mundial, “Ideais para adiar o fim do mundo” (Cia das Letras), e me impressionou vivamente a sabedoria que perpassa o livro inteiro, assim como a de outros sábios indígenas, que os boçais que cuidam (o verbo cuidar é impróprio, quase ofensivo) dessas populações a cada mês mais desarticuladas e esbulhadas por alguns bandidos do agronegócio, que não dão a mínima às suas vítimas. Ao contrário, zombam e os apelidam de defensores do atraso e inimigos do progresso do país. Os pensamentos de Krenak, um homem austero de face confiável e cujo rosto parece de aço, são de fato emocionantes quando não culminantes “o mundo artificial dos humanos foi o que parou. A natureza e sua biodiversidade seguirão sem nós, porque a elas não faremos falta se desaparecermos”. Ao contrário, acrescento eu, a humanidade mais destrói do que faz vicejar o bem comum, as terras, as plantas e as águas. Todas, anotem bem, violentadas pelo péssimo pensamento do que se entende por progresso. Enquanto prosseguimos na caolha concepção de progresso, uma ideia velhíssima que arribou por aqui desde 1500, com os oblíquos e nevoentos exploradores europeus a destruir florestas, rios e animais. Creio que podemos bater no nosso tórax e exclamar “somos piores que a COVID-19”. Essa possibilidade de orgulho atlético às avessas nada mais significa que o abandonar a percussão doentia de nossos corpos, agora já tomados pelo castigo do coronavírus.

E falar nele, enquanto lastimo pelo que há de vir a ocorrer com nossos pobres indígenas com a pandemia chegando a seus redutos, sem possibilidades de defesa. Que já está a ocorrer tragicamente, como informam a cada dia os jornais no Estado do Amazonas e sua capital, Manaus.

Agrego a este final de amarga crônica um preito de desolação pela morte de dois queridos amigos, grandes escritores, Sergio Santanna e Marcus Vinicius Quiroga. Sergio desfrutava de justa notoriedade como criador da renovação de estilo literário, e Quiroga, mais discreto em repercussão pública, era um saudado poeta militante da literatura e integrante cum laude da Academia Carioca de Letras. A ele devo trabalhos de alta qualidade como meu diretor, ao tempo em que presidi por duas vezes a Casa do Padre Anchieta, (o Patrono da Academia, além de cronista primacial da fundação da Cidade de São Sebastião, ao lado de Estácio de Sá). Bem estimaria que o desconsolo se limitasse a mim. Desgraçadamente atinge a literatura brasileira em seu pulmão. Pela morte de ambos, sacrificados pela falta de ar, já que os pulmões da melhor arte do escrever ficaram asfixiados e doentios com a ausência de Santanna e Quiroga.

Costumo usar uma exclamação piedosa e religiosa, quando todos sofremos e lamentamos perdas – Meu Deus!


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do conselho editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.