Por Ana Paula Alvarenga Martins

A violência de que são vítimas têm em comum uma realidade complexa desigual, patriarcal, racista e misógina.

No aparente tranquilo cenário do município de Simões Filho, na Bahia, a comunidade do Quilombo Pitanga dos Palmares foi abalada por um ato de violência atroz e covarde. Dona Bernadete Pacífico, Mãe Bernadete, ialorixá do Quilombo e incansável liderança na luta contra fazendeiros e empresas pela regularização fundiária e autogestão do território, foi vítima de um assassinato cruel. Sua vida foi dedicada à defesa dos direitos dos povos tradicionais e à luta por justiça. Defensora dos direitos humanos internacionalmente reconhecida, coordenadora da CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos e ex-secretária da Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho, Mãe Bernadete era mais do que uma líder, era a voz da resistência da comunidade de Pitanga dos Palmares.

Sua determinação em enfrentar poderosos interesses econômicos, que há anos tentavam usurpar as terras da comunidade, a transformou em uma figura emblemática da resistência. Ela compreendia que a luta pelo direito à vida não se limitava apenas à garantia física dos indivíduos, mas também ao direito de viver em harmonia com sua terra, cultura e história. Sua luta pela regularização fundiária e gestão autônoma do território ia além da esfera local. Ela inspirou outros grupos em situações semelhantes a defenderem seus direitos perante a exploração predatória e a degradação ambiental. Dona Bernadete entendia que a terra era uma extensão da identidade da comunidade e que sua proteção era essencial para a sobrevivência de suas tradições e modo de vida.

Dois dias antes do brutal assassinato da líder quilombola, o líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Pedro Stedile, prestou depoimento por mais de seis horas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o MST, na Câmara dos Deputados. A CPI foi instaurada por requerimento de deputados da extrema direita, claramente com o objetivo de criminalizar o Movimento. Em diversas ocasiões durante a CPI e sobretudo, durante todo o depoimento de Stedile, a tentativa de criminalização ficou evidenciada pelas manifestações dos deputados de oposição, tendo o relator afirmado que, “em relação ao MST, à Frente Nacional de Luta, à Via Campesina e qualquer outro movimento de invasão de propriedade, o que nós queremos estabelecer é que existe uma lei no Brasil que protege a propriedade privada. Todas as ações que são criminosas e de desrespeito à propriedade privada devem ser indicadas e investigadas por essa CPI, seja do MST ou de qualquer outro grupo”.

A tentativa de criminalização institucional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) visa minar a força política e a capacidade de luta de um dos maiores e mais importantes movimentos populares e sociais do Brasil, obstando os processos democráticos e influenciando negativamente a opinião pública. Os discursos extremados, recheados de concepções distorcidas da realidade brasileira, da defesa abjeta de interesses que atentam contra a democracia, contra os valores constitucionais e contra a justa distribuição de terras e riquezas, deixam evidente a desesperada tentativa de inviabilizar o movimento de construção de uma sociedade plural, igualitária e solidária.

O MST tem desempenhado um papel fundamental na história social e política do Brasil, uma resposta à concentração de terras, realidade que historicamente contribui para a desigualdade social e econômica no país. Desde sua fundação, em 1984, o MST tem sido uma voz ativa na luta pela reforma agrária, distribuição de recursos produtivos, justiça social e direitos dos trabalhadores rurais. Sua importância transcende as fronteiras agrícolas, impactando áreas como a política, a economia e a conscientização pública por meio da educação popular, fortalecendo a capacidade dos trabalhadores rurais de se engajarem ativamente na sociedade.

A violência real de que são vítimas muitas e muitos líderes populares, defensoras e defensores dos direitos humanos e a tentativa de criminalização institucional dos movimentos sociais no Brasil, têm em comum questões complexas e enraizadas em dinâmicas sociais, econômicas e políticas do país. Uma sociedade estruturalmente desigual, patriarcal, racista, misógina e preconceituosa, em que os poderes constituídos, inclusive o Poder Judiciário, são instrumentalizados na defesa dos privilégios de uma casta branca e detentora da riqueza. E quando os caminhos institucionais não são suficientes à manutenção dos privilégios, a violência e a morte daqueles que lutam por uma sociedade mais justa assumem o infame protagonismo.

A violência que resultou na morte de dona Bernadete Pacífico e a iníqua tentativa de criminalização institucional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra pela CPI da Câmara dos Deputados alertam para os grandes desafios enfrentados pela sociedade brasileira, pelos movimentos sociais e populares, pelos povos tradicionais e pelas comunidades rurais na busca por justiça e igualdade.

É fundamental que a memória e o legado de Dona Bernadete Pacífico não sejam esquecidos. Sua dedicação à causa deve continuar a inspirar a comunidade de Pitanga dos Palmares e outros movimentos a manterem a chama da luta acesa. A batalha pela regularização fundiária e a gestão autônoma do território não deve ser interrompida, mas sim intensificada em honra à sua memória.

As autoridades competentes devem realizar uma investigação rigorosa para trazer os responsáveis pelo assassinato de Dona Bernadete à Justiça. Além disso, é essencial que medidas de proteção sejam implementadas para garantir a segurança das lideranças comunitárias que continuam a lutar pelos direitos fundamentais de suas comunidades. Quantas Bernadetes, Marielles, Dons e Brunos precisam morrer?

Dona Bernadete Pacífico deixa um legado de coragem, determinação e resistência. Sua vida é um testemunho da luta por justiça e igualdade e deve inspirar esperança e solidariedade. A comunidade de Pitanga dos Palmares e todos aqueles que lutam por justiça social devem se unir em sua memória e seguir adiante na busca por um mundo mais justo e sustentável.

É fundamental que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra continue sua luta pela reforma agrária, pela promoção e defesa dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores rurais, pela educação e conscientização política, popular e emancipadora de todas e todos que vivem no campo.

Dona Bernadete Pacífico presente!

Em apoio ao MST! Lutar pela terra é um direito!

ANA PAULA ALVARENGA MARTINS é juíza do Trabalho do TRT 15, mestranda em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp.

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Brasil de Fato.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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