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A Propósito das Classes Perigosas – por Lincoln Penna
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A Propósito das Classes Perigosas – por Lincoln Penna

Por  Lincoln Penna

“A sociedade ‘principal’, por uma decisão consciente tomada de cima para baixo, está repetindo, mais uma vez, a sua estratégia tradicional de reprimir pela violência a participação das massas populares na luta econômica e na luta política, que são o leito natural da luta de classes, o caminho democrático da luta de classes. E, ao pôr em prática essa estratégia conservadora e reacionária, a elite das classes dominantes forçou a parte mais desesperançada e mais desesperada das classes pobres, aqueles que penetraram no “inferno do pauperismo”, a modificarem seu comportamento tradicional e a passarem das fileiras do proletariado para as fileiras do lumpemproletariado; a se transformarem de reservas do “mundo do trabalho” em reservas do “mundo do crime”; a passarem, em suma, das “classes laboriosas” para as “classes perigosas”..(Alberto Passos Guimarães, As Classes Perigosas. Editora UFRJ p.260).

A epígrafe que abre essa reflexão pode não ser novidade para quem se ocupa e reflete acerca do que se passa em nossas cidades e no mundo rural. Afinal, o noticiário das diferentes mídias tem registrado o incremento da violência em nosso cotidiano, e a maioria de seus habitantes tem naturalizado essa situação, embora preocupante e até angustiante nas comunidades mais desassistidas e mais violentadas.

Debruçar sobre essa questão implica em trazer à tona acontecimentos que são corriqueiros, mas se encontram insensíveis de modo a não provocar em nossos corações e mentes a justa revolta. Fatos que, no entanto, tem passado ao largo de nossas inquietudes, como se naturais fossem. Não nos cobramos como corresponsáveis e tampouco o fazemos em relação aos nossos representantes, os gestores públicos. A tudo se assiste passivamente como se fossemos plateia e não cidadãos conscientes.

Quando o autor da abertura dessas linhas faz alusão às classes perigosas decorrentes da exclusão social sua abordagem esclarece o que passamos séculos depois. Trata da expansão do capitalismo em seus primeiros momentos a produzir as massas despossuídas, numa sociedade ainda fortemente marcada pela escravocracia. Isso nos faz pensar, portanto, na origem dessa situação, resultante dos males sociais causados pela rápida irradiação do capitalismo na busca incessante da acumulação extraída com base na exploração do trabalho humano.

O autor se fundamenta em Marx, cuja análise do processo histórico fez florescer as relações de produção entre capital e trabalho inspirou vários cientistas sociais, destacadamente entre eles os historiadores. Inúmeros trabalhos acadêmicos apontaram ao longo dos anos, em que as pesquisas se voltaram para essa questão, as sequelas produzidas pelo modo de produção que se mundializou e tem desde então ampliado largamente as desigualdades sociais, sobretudo nas áreas historicamente submetidas à conquista e ao que se denominou de colonização por parte dos países europeus. A expansão mercantil resultou na conquista sangrenta nos demais continentes, subtraindo povos originários e refazendo suas histórias.

Convém deixar claro que o sentido emprestado para designar o contingente que formou o “exército da reserva industrial”, termo de Marx para definir a força de trabalho não empregada, nada tem a ver com a criminalidade necessariamente. Nas suas origens, esse contingente social servia para realimentar a obtenção da mais-valia, conceito igualmente proveniente de Marx, que define a forma pela qual é obtido o lucro adicional do empregador capitalista sobre o assalariado. Com a multiplicação de seu contingente e as seguidas crises econômicas essa reserva não tendo condições de obter colocação no mercado de trabalho passa a alimentar ações extralegais, desviada para o mundo do crime para sobreviver, daí surgindo a aplicação do termo classes perigosas.

No caso brasileiro examinado por Alberto Passos Guimaraes e subsidiado por alguns autores de referência mencionados em sua obra, o surgimento de nossas classes perigosas serviu ao coronelismo de onde emergiria o cangaço não menos violento do que a forma através da qual eram e ainda são tratados os remanescentes escravizados.

A Abolição da escravatura além de não alterar substancialmente a condição dos libertos permaneceu sob vários subterfúgios muito presente em nossos dias.

Com o samba-enredo “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”, a Paraíso do Tuiuti fez um dos desfiles mais marcantes do Carnaval de 2018 no Rio de Janeiro. (Divulgação)

A alternativa dos que têm sido excluídos da divisão de bens e serviços de modo a subsistirem de forma indigna nos espaços públicos de nossas metrópoles a esmolarem até a exaustão do suplício da indigência, não resiste por muito tempo. A fome e o abandono massivo e sua exposição humilhante leva, por vezes, a engrossarem nas organizações criminosas. Estas, mais recentemente, têm multiplicado os seus integrantes mediante a cooptação de adolescentes sem escolaridade e trabalho junto às comunidades mais pobres e abandonadas pelos serviços públicos.

Diante dessa situação, o conceito de classes perigosas bem que poderia ser aplicado às classes dominantes, porque são elas as responsáveis pelo futuro das próximas gerações. As atuais mais ou menos bem-nascidas ou se encontram iludidas quanto ao futuro que as esperam, e anestesiadas pelo total alheamento desse quadro que só faz se acentuar, ou não se importam porque são amplamente atendidas em seus desejos, já que fazem parte de um pequeno número dos que se abastecem da miséria alheia.

É tempo ainda de se dar início a um processo transformador. Ele principia tendo como farol necessariamente uma perspectiva revolucionária, se quisermos usar o vocábulo mais adequado, pois só uma mudança estrutural é capaz de remover as arcaicas estruturas que se mantêm faz tempo. Esse projeto de mudanças profundas substituindo velhas práticas e atitudes obsoletas no trato da nação brasileira e especialmente de seu povo mais subalternizado pela exclusão social depende de muitos fatores e circunstâncias, que não atendem apenas à vontade individual.

A evolução como uma meta a ser alcançada foi e ainda é objeto de muitas considerações. Contudo, evoluir sem mexer nos obstáculos que impedem o avanço tão necessário para as massas desamparadas pouco adianta. Quando muito reforça as estruturas apenas modernizando-as. E de reformas em reformas nada garante as mudanças que tanto necessitamos com vistas ao desenvolvimento que atenda ao povo, cuja esperança inabalada, embora sem motivos reais, permanece irremovível.

A quem tentou no passado associar a revolução à evolução, tal como fizera um dos nossos primeiros cientistas sociais, Azevedo Amaral. Nem mesmo usando termos combinados para juntar os dois vocábulos num único conceito, quando adotou a denominação revolucionismo em seus estudos sobre o Brasil, permitiu que se chegasse a algum lugar. Na verdade, o objetivo de suas reflexões, em seu livro O Estado Autoritário e a Realidade Nacional, era diferenciar o totalitarismo do autoritarismo no que respeita ao Estado Novo, que para ele era um regime autoritário, distinto dos regimes fascistas que se projetavam à época de seus escritos.

Cabe, por fim, considerar a autoestima do povo como um elemento de grande importância para que ele venha a virar o jogo de maneira a assumir uma voz proativa com vistas ao destino do país. Jamais transformar o uso de símbolos pátrios, como tem sido feito pelas forças do regresso ultimamente. Elas se valem de camisas e bandeiras nacionais como se esses mantos expressassem a sua libertação. Ao contrário, são quando muito manifestações de subserviência abjeta e, por isso mesmo, desprezíveis porque alinhadas acriticamente a lideranças oportunistas e que se encontram mais afinadas às concepções totalitárias.

Resta as chamadas classes perigosas a consciência de que o caminho seguro é a comunhão com os seus coirmãos para que conscientemente possam forjar a alternativa capaz de resistir à opressão. E esse não está nas mãos de quem se julga senhor dos espaços comunitários, tais como os criminosos do narcotráfico e das milícias, de modo a reproduzir a exploração dos que se revestem de autoridade.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Secretário Geral do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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