Por João Batista Damasceno

O que indignou as consciências foi a prática da violência na orla, espaço reservado para o lazer e o bem estar de um setor privilegiado da cidade dividida. Nas favelas e bairros da periferia, mesmo as chacinas praticadas pelos agentes do Estado não geram comoção.

O lutador de jiu-jitsu que imobilizou o congolês Moïse alegou que apenas reagiu a uma tentativa de agressão. Outro partícipe do fato disse que bateu repetidas vezes com uma madeira para “extravasar a raiva”. Diversos são os instrumentos utilizados para a violência, mas as vítimas costumam ter as mesmas características: pretos e pobres odiados por existir.

O brutal assassinato de Mõïse nos chocou, resultando manifestações no Rio de Janeiro e em outras cidades. Perguntei a um morador do Jacarezinho se alguma criança chega à adolescência na favela sem presenciar uma cena daquelas. A resposta foi que se trata de violência cotidiana. Se todos sabemos que cotidianamente pessoas são brutalmente assassinadas nas favelas e periferia, o que indignou a classe média no brutal assassinato de Moïse? A resposta possível é que a violência está liberada contra pretos e pobres, desde que não seja feita na sala da Casa Grande.

O que indignou as consciências foi a prática da violência na orla, espaço reservado para o lazer e o bem estar de um setor privilegiado da cidade dividida. Nas favelas e bairros da periferia, mesmo as chacinas praticadas pelos agentes do Estado não geram comoção.

A morte de dezenas de pessoas num mesmo dia no ano passado pela Core, no Jacarezinho, não causou qualquer indignação nos setores que estão alvoroçados com o bárbaro crime na orla. O Jacarezinho, que o líder comunitário Rumba Gabriel diz ser o mais antigo quilombo do Rio de Janeiro, voltou a ser ocupado pelas forças policiais e a violação aos direitos dos moradores não causa comoção, nem manifestação. Na terça-feira passada, dia 8, Rumba narrou o que é o cotidiano de moradores de favelas em encontros com os agentes do Estado.

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Rumba Gabriel detalhou casos de abusos cometidos por policiais militares para a tenente-coronel Azevedo, coordenadora das UPPs. (Crédito: Daniel Mazola / Tribuna da Imprensa Livre)

Este é o relato do líder comunitário Rumba Gabriel:

“FAVELAS BOA TARDE! Muito triste o que está acontecendo no meu Quilombo Jacarezinho. Virou uma terra sem Lei. Os batalhões ditos especiais da PM, estão fazendo o que querem no nosso território. A cultura do ódio nascida em alguns gabinetes que prestaram homenagens a milicianos, agora se encontra por aqui: invasões em domicílios, roubos de televisões, notebooks, etc, como se o pobre não tivesse condições de ter. Neste último domingo, uma amiga me pediu ajuda para localizar um policial do Choque que havia levado a sua chave. Neste mesmo domingo prenderam um amigo que foi à padaria apenas para comprar pão. Mas ele é negro, logo chamaram-no de traficante. Sábado passado uma multidão estava presente no Quiosque da Morte na Barra da Tijuca. Cheguei a sonhar que todo movimento negro viria para o grande Quilombo Jacaré. Todo mundo falando bonito. Parecia uma disputa de quem falaria com mais perfeição para que no final fosse aplaudido. Cheguei a dizer que falar ali era mole. Queria ver falar aqui onde o coro come e ninguém vê. Onde filho chora e mãe também não vê. Hoje quando acordei, notei que a porta da cozinha estava aberta. Eles sabem que na minha casa tem câmera. Então, com certeza foram pelos fundos onde não tem! Esperaram eu sair e quando me dirigia para fazer compras, covardemente ao perceberem que eu não entrei nos becos onde poderiam me agredir sem que ninguém visse e coisas piores poderiam acontecer, esperaram eu passar pela rua principal. Com sangue nos olhos e ódio no coração. Me deram uma ESCARRADA! Graças a Deus consegui me manter frio e calmo. Aprendi isso com o meu Cristo guerreiro. Só perguntei o porquê de tanto ódio de mim. Ele respondeu: – FODA-SE!”.

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Caminhada da comissão pelas vielas do Jacarezinho – 08/02/2022. Desembargador Siro Darlan disse saber da angústia dos moradores que vivem ameaçados por invasões nas residências. (Crédito: Daniel Mazola / Tribuna da Imprensa Livre)

Rumba tocou na questão. Quando de uma chacina em Irajá, um grupo de juízes foi ao Conjunto Habitacional Amarelinho, no mesmo bairro, para se encontrar com moradores e familiares das vítimas. Dentre eles estava o juiz Siro Darlan. Na verdade, desembargador. Outro grupo, igualmente preocupado com a violência policial, se reuniu para uma conversa sobre o assunto no Amarelinho da Cinelândia. Cada grupo se encontrou num Amarelinho, expressando as distintas concepções de interação: uns com a realidade concreta; outros com as considerações abstratas sobre o que vitimou aquelas pessoas.

A violência que vitimou Moïse foi praticada por quem a vivencia cotidianamente na periferia, que a naturaliza e desumaniza o outro. Os que falam em caminhões na orla, em situações ocasionais, igualmente precisam ouvir nas favelas e periferias, onde a violência é cotidiana. Quinta-feira passada, dia 10, o desembargador Siro Darlan compareceu ao Quilombo do Jacarezinho onde se encontrou com moradores vitimados pela violência cotidiana e do Estado.

Outros Siros são necessários para que a pior das violências não perpetue: a indiferença.

JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI. Texto publicado inicialmente em O Dia.


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