Por Carlos Mariano –
É sempre bom lembrar, especialmente no Dia Internacional da Mulher que, um dos lugares onde o preconceito contra a mulher, infelizmente, ainda está muito presente é na memória. Apesar de, felizmente, termos evoluído muito da década de 1990 pra cá, com o aumento do número de historiadoras e trabalhos que incorporam a participação da mulher na História, ainda há um campo extenso de pesquisa para ser feita no sentido de resgatar personagens e fatos que construam uma historiografia mais plural e menos machista.
No campo cultural, todos nós sabemos que o samba é nossa identidade maior, mas a história do samba ainda está longe também de reconhecer historicamente a participação e importância da mulher na sua memória e na de suas escolas de samba.
As chamadas tias baianas do samba, por exemplo, foram mulheres à frente do seu tempo, que conseguiram romper com o duro obstáculo que era ser mulher, negra e mãe de santo na sociedade brasileira do início do século XX. Além de suas saias rodadas, levavam força na personalidade e um carisma extraordinário. Elas eram lideranças naturais, coisa muito difícil de ser exercida na época de uma sociedade patriarcal e mais machista do que a atual. Apesar das dificuldades, costuravam e construíam uma rede de relações sociais que lhes fortalecia nos serviços da comunidade negra da época. Dessas redes de contatos surgiram tradicionais e badaladas festas na casa de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata – a tia mais famosa de todas. Ela conseguia aproximar setores da elite do século XX da turba negra recém liberta da escravatura e que trazia consigo uma rebeldia representada na sua cultura de resistência e no combate à desigualdade que persistia intacta na recente República. Toda essa postura e ineditismo fizeram dessas tias verdadeiras matriarcas da pequena África – região do Rio de Janeiro onde a negritude afro-brasileira fez sua morada para praticar e defender sua cultura e ancestralidade.
Nessas festas eram ouvidos os batuques trazidos pelos negros e negras de Angola e do Congo durante sua dramática travessia nos navios negreiros. Desses batuques, que tinham como objetivo a invocação dos deuses africanos, foi se constituindo o nosso querido samba.
As aglomerações que faziam em suas casas e que depois se expandiu por toda a cidade, a exemplo da festa da Penha, virou uma síntese da cultura popular carioca. Essas tias baianas conseguiram unir a cultura do Rio de Janeiro ao seu redor e assim começar o processo de nacionalização do samba como referencial da cultura do país.
O samba moderno dos bambas do Estácio se popularizou na casa da Tia Ciata. Assim, os ranchos, maxixes, polcas e choros foram tocados sem preconceito nas jornadas culturais que aconteciam na Rua Visconde de Itaúna, 117. As festas ajudavam a aproximar os artistas, independente da sua classe social ou cor, e também colocou a cultura produzida por mulheres e homens da classe trabalhadora, semianalfabetos, como opção de gosto para as elites que, até aquele momento, conheciam muito mais a cultura da “Belle Époque”.
Um dos segmentos mais tradicionais dessas históricas agremiações carnavalescas é a ala das baianas – que ainda hoje encanta quem assiste a escola e sua gente desfilar. Trata-se de uma franca e merecida homenagem às mulheres que rodam soberanas no Carnaval – pois são a essência de toda escola. Nossas baianas de hoje usam a mesma indumentária das baianas dos terreiros de tempos vividos e são elas que cuidam do mundo do samba. Sem elas, as escolas de samba não conseguem funcionar. Elas formam o coral feminino nos ensaios, são as responsáveis pela cozinha – local sagrado onde se dá vida ao que está morto. São verdadeiras alquimistas que transformam e movimentam a natureza. No seu gingado e rodopiado, a baiana de hoje é o fio condutor da vida das escolas e do samba em si. A cada desfile elas morrem e nascem trazendo consigo o dom de serem as damas mães de santo e do samba, educadoras e líderes comunitárias.
Um viva às baianas, um viva à força e resistência da mulher.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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