Por Roberto Amaral

A preservação da retomada do pensamento progressista muito está a depender do que virá a ser o governo Lula.

Devo ao deputado José Guimarães a definição-síntese do espetáculo que o processo histórico nos proporcionou na manhã-tarde do já inesquecível primeiro de janeiro de 2023: a republicanização do país, como podemos definir a retomada dos valores da res publica agredidos pelo regime civil-militar protofascista derrogado em 30 de outubro.

Essa “republicanização”, cuja raiz é o pronunciamento eleitoral (em certa medida um pronunciamento plebiscitário entre a democracia e a promessa de ditadura), se expressa nas circunstâncias excepcionais da posse do novo presidente, muito ensejadas pelo comportamento canhestro do governo despejado, a começar pela fuga do capitão, completada pela recusa coletiva de seus ministros – com raras exceções, como a do chanceler e do ministro da ciência e tecnologia – de passar o cargo a seus sucessores. À deserção presidencial seguiu-se a grosseria de meia dúzia de militares, os de sempre. O general então vice não assumiu seu papel de presidente, e, também fujão, valeu-se de rede nacional de rádio e televisão, indevidamente convocada, para anunciar sua candidatura à liderança da oposição, em disputa já declarada com seu criador – que partira em vilegiatura, com seu séquito, em avião da presidência da república. Os chefes das chamadas forças, liderados pelo lamentável general ministro da defesa (que seja o último), abandonaram seus comandos antes da posse de Lula para assim fugir da obediência constitucional ao novo incumbente. O gesto do ex-presidente, ao autoexilar-se em Orlando para, entre outras coisas, eximir-se do dever de transmitir o cargo ao sucessor, foi covarde e grosseiro, estúpido embora não surpreendente; mas como essa ausência embelezou a festa popular, ensejando a manifestação da força republicana, há muito ausente!

A simbologia da troca do poder se materializou mais fortemente do que jamais o fôra naquele ato de nova liturgia cívica, celebrado pelo povo, por homens e mulheres do povo-massa, conduzindo a faixa símbolo da presidência. Dispensada a intermediação, foi o próprio povo – uma mulher, negra, catadora de lixo – quem entregou a faixa presidencial a Lula.

Na ausência de seus antigos titulares, a posse dos novos ministros se fez também sem intermediação: uma vez mais as circunstâncias diziam que o poder deriva do povo e que, em determinadas circunstâncias, ele o pode exercer diretamente. A festa foi, assim, mais autêntica. É a essa nova liturgia que chamamos de “republicanização”, querendo ver nela a apropriação popular do processo republicano-democrático.

Leia-se como apropriação um processo apenas iniciado, um só ponto de partida, sem garantias de persistência e continuidade, se não desaguar, para assegurar sua sobrevivência, num grande e profundo (e certamente lento) processo de organização popular, ao qual o novo governo, programaticamente de centro-esquerda, deverá estar atento. O processo irrompe e chega à superfície, mas não se sustenta por si só, pois os fenômenos sociais não são autônomos. Consabidamente, as conquistas políticas não trazem consigo nem a garantia do progresso contínuo, nem a certeza de sua persistência, o que explica os frequentes e aparentemente inexplicáveis avanços e recuos do processo social: os avanços, tanto quanto os recuos, não caem dos céus nem sobrevivem por força de sua natureza, como sugere uma visão religiosa do determinismo histórico: eles dependem do processo social, isto é, da permanente ação humana.

É preciso considerar a lição histórica quando pretendemos preservar a continuidade de um movimento político que identificamos como de avanço.

Imgens de drone da Praça dos Três Poderes, durante a cerimônia de posse da presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva

Os avanços dependem de sua renovação permanente, mas dependem ainda, talvez preponderantemente, da politização das massas e da organização popular, um desafio permanente que mais se aprofunda na medida em que mais se agravam as condições da luta social, atingida pela crise dos partidos progressistas e as crescentes dificuldades do movimento sindical, incapaz, por exemplo, entre nós, de fazer frente às políticas antipopulares e anti-trabalhistas levadas a cabo pelos governos que se sucederam, como verdadeira unidade, ao golpe de 2016.

O fato novo que registramos pode esvair-se como água em terra árida, como se deu com boa parte das conquistas políticas e sociais decorrentes da queda da ditadura de 1° de abril de 1964, a vitória do pacto de 1988 e, mais precisamente, os avanços políticos e sociais legados pelos treze anos de governos de centro-esquerda presididos por Lula e Dilma Rousseff. Esses avanços democráticos e sociais, a caminho de um projeto de democracia participativa, foram um a um derrogados sem resistência a partir do golpe de 2016, que conheceu seu ápice na eleição de 2018 com a instauração e vigência até ontem de um projeto protofascista de Estado com explícito apoio das forças armadas e do grande capital. Nesse período, recorde-se, uma presidente recém-eleita foi deposta porque lhe faltaram sustentação parlamentar e apoio popular. Na sequência, um presidente que deixara o poder afagado pela aprovação de cerca de 80% do eleitorado é levado à prisão na culminância de um procedimento judicial viciado dirigido por um juiz de piso desonesto, incompetente e parcial. Como pano de fundo, o recuo político dos movimentos sociais e a recessão do debate ideológico.

Assim se afigurava vencido o movimento popular que, partindo dos dois mandatos da socialdemocracia paulista, avançara com três governos de centro-esquerda, assinaladores do progresso político da sociedade brasileira, um progresso que, diria a história presente, era mais desejado do que real. Mas naquele então esse processo parecia irreversível e profundo aos olhos de observadores incapazes de interpretar o processo de formação política da sociedade brasileira que chega aos nossos dias, herdeira da casa-grande, do latifúndio, do racismo, da dependência política e da alienação política. Presos às aparências, ou dominados pela vontade, não vimos que no âmago do que pareceria ser apenas progresso se gestava o seu contrário, a onda de extrema-direita que afloraria a partir de 2013, para explodir em 2018 e nos manter ameaçados até aqui. Quando conseguimos ver o ovo da serpente, a peçonha já era adulta. Em seu bojo se alimentava o que, para simplificar, identificamos como bolsonarismo, esse projeto de retrocesso a duras penas contido nas cordas do tablado eleitoral, mas sobrevivente politicamente na medida em que conserva o apoio de considerável parcela da população, fato inédito nas formações da extrema-direita brasileira.

A preservação do que traduzo como retomada do pensamento progressista muito está a depender do que virá a ser o governo Lula, nascido de uma frente ampla eleitoral de espectro o mais largo já conhecido na república e obrigado a governar conciliando com uma frente partidária ainda mais heterogênea, para que possa dispor da base parlamentar que faltou a Dilma.

O governo de centro-esquerda ainda não é, está por ser, fazer-se, e o que está por ser não tem forma definida, senão projeto. Seu caráter muito dependerá da correlação de forças estabelecida na sociedade e na politica, que caberá a Lula ora tourear ora harmonizar, a partir de um programa de governo e de um projeto de sociedade concretos. Este já existe, pois nos discursos que proferiu no Congresso, ao ser empossado, e no parlatório, ao falar ao seu povo, Lula desenhou um projeto de país, afirmou uma linha politica, estabeleceu estratégias. Disse o que pretende e o que fará, com definições claras, como a opção pelos pobres – um divisor de águas em face do passado recente –, pelo desenvolvimento, pelo progresso social na democracia e pela soberania nacional.

Essas linhas qualificam o governo, e criam as condições para o embate politico-ideológico, ao encargo dos partidos e do movimento social.

(Colaboração de Pedro Amaral)

ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle). www.ramaral.org

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