Por Jeferson Miola –
Por meio dos monopólios hegemônicos de comunicação, os EUA e aliados europeus tentam emplacar uma narrativa que estigmatiza a Rússia pelos acontecimentos na Ucrânia.
Para isso, retomam a cartilha maniqueísta da guerra fria e se apresentam como os mocinhos heróicos que protegem a Europa e o mundo ocidental das ameaças dos “bárbaros caucasianos”.
Os precedentes do atual conflito evidenciam, porém, que a realidade é bastante diferente da versão propagada pelas grandes potências ocidentais e mídia hegemônica.
Nos anos 2012/2013, no contexto da ofensiva para expandir os domínios da influência imperial estadunidense no leste europeu e aumentar o cerco estratégico-militar da OTAN à Rússia, os EUA financiaram e instrumentalizaram agrupamentos de ultradireita, em grande número integrados por neonazistas, com o objetivo de desestabilizar o governo pró-russo de Viktor Yanukovytch.
Em novembro de 2013 a onda desestabilizadora desaguou em um “movimento cívico” nos mesmos moldes das “primaveras árabes” e das “jornadas de junho do Brasil”. Este movimento em nada cívico, porque incensado desde o estrangeiro, exigia a integração da Ucrânia com a União Europeia e o ingresso do país na OTAN.
Não por coincidência, as reivindicações da Euromaidan – Europraça, em ucraniano, como ficou conhecida a onda de protestos na Ucrânia – eram exatamente as mesmas de outros movimentos e processos estimulados e financiados pelos EUA mundo afora: corrupção, crise econômico-social e violação dos direitos humanos.
Com a escalada golpista e o ascenso de movimentos independentistas e separatistas de resistência, o país ficou fraturado e dividido. Em fevereiro de 2014, o presidente Viktor Yanukovytch foi destituído em um processo de impeachment que foi classificado como golpe de Estado pelo governo russo.
Como a intromissão na Ucrânia, os EUA e aliados europeus finalmente conseguiram instalar no comando do país um governo anti-Rússia e pró-OTAN.
Mais além da identidade étnica-cultural e do mercado de consumo de cerca de 44 milhões de pessoas, a Ucrânia é central para os russos, pois conforma o extenso cinturão de segurança na fronteira da Rússia.
A Ucrânia legou da era soviética a indústria aeronáutica e de alta tecnologia e é importante produtor de alimentos do mundo. O gasoduto que ainda transporta o maior volume do gás russo vendido à Europa atravessa o território ucraniano. Já está finalizada, mas pendente de certificação pela Alemanha para iniciar as operações, a linha Nord Stream2 do novo gasoduto, de 1.224 Km, através do Mar Báltico e não pelo território ucraniano.
Empresas estadunidenses como a Chevron e a Exxon Mobil possuem contratos de pesquisa, extração e exploração de gás na Ucrânia. Além dos lucros extraordinários destas multinacionais norte-americanas de petróleo e gás, os investimentos visam diminuir a dependência energética e, portanto, política, da Rússia.
O fator geopolítico é, contudo, o mais relevante nesta disputa. Os EUA enxergam no projeto de Vladimir Putin uma estratégia de “ressovietização” da Europa Oriental para o país avançar no tabuleiro mundial como uma hiperpotência.
Hillary Clinton, Secretária de Estado do governo Barak Obama [2009/2016], insinuou que o esforço de Moscou de integração regional “vai ser chamado de união aduaneira, de União Eurasiática ou qualquer coisa assim. Mas não devemos nos enganar. Nós sabemos qual é o objetivo e vamos pensar em meios efetivos de freá-lo ou impedí-lo”, ela declarou em 6/12/2012 [O Estado de SP].
O establishment estadunidense vê a Ucrânia como peça-chave para o reerguimento do império soviético. Zbigniew Brzezinski, que foi Secretário de Estado de Jimmy Carter [1978/1982], escreveu em 1997, recém completados 6 anos depois da dissolução da URSS:
A Ucrânia, novo e importante espaço no cenário eurásico, é uma coluna geopolítica porque a sua própria existência como país independente consente a transformação da Rússia. Sem a Ucrânia a Rússia deixa de ser um império eurásio. A Rússia sem a Ucrânia pode ainda lutar pela sua situação imperial, mas será apenas um império substancialmente asiático, provavelmente enredado em conflitos deteriorantes com as nações da Ásia Central, que seriam sustentadas pelos Estados Islâmicos, seus amigos do Sul. […] Os Estados que merecem o maior apoio geopolítico americano são o Azerbaijão, o Uzbequistão e (fora desta área) a Ucrânia, pois todos os três são pilastras geopolíticas. Pode-se dizer que a Ucrânia é o Estado essencial, pois influenciará a evolução futura da Rússia.” [entrevista a Maurizio Blondet, 1997].
O aparente avanço geopolítico e geoestratégico da OTAN com a ofensiva de 2014 foi mais virtual que real. A intromissão estrangeira na Ucrânia desencadeou uma forte reação russa e, também, a emergência de forças separatistas, pró-russas e anti-OTAN em algumas regiões do país.
Como efeito imediato, ainda em 2014 a Rússia anexou Criméia e Sevastopol depois que estas regiões se declararam unilateralmente independentes da Ucrânia e pediram anexação ao país. E, no último dia 21/2, o governo Putin reconheceu oficialmente a independência autodeclarada das regiões Donetsk e Luhansk.
Os acontecimentos na Ucrânia são, como se percebe, desdobramentos previsíveis da esperada reação russa às políticas intervencionistas dos EUA e OTAN no leste europeu. Putin sempre deixou claro não admitir nenhuma espécie de expansão da OTAN que possa colocar em risco a segurança da Rússia.
A mídia monopólica mundial, controlada desde Washington, distorce a realidade e replica a narrativa russofóbica que é repetida pelos meios de comunicação colonizados ao redor do mundo como verdade absoluta.
A disputa geopolítica em andamento deverá acelerar as mudanças do sistema mundial na direção do multilateralismo.
Por enquanto, Putin, que é apoiado pela China, está vencendo esta batalha. Com inteligência estratégica, sem disparar um único tiro, ao passo que os EUA e a OTAN são os grandes perdedores.
Com a proposta sino-russa de reconfiguração da ordem mundial apresentada por Xi Jinping e Vladimir Putin por ocasião dos Jogos de Inverno, em Pequim, a hegemonia dos EUA ficou seriamente questionada e a OTAN perdeu totalmente sua razão de ser e existir.
A evolução e o desfecho desta crise são imprevisíveis, mas uma coisa é certa: o poder imperial e unipolar dos EUA vive seu estertor.
JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista, Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial
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