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Enquadrar a quem? – por Ana Carolina Bartolamei Ramos
Justiça, Opinião

Enquadrar a quem? – por Ana Carolina Bartolamei Ramos

Por Ana Carolina Bartolamei Ramos –

Esse é um texto sobre direitos humanos, mas não corra antes do fim. Correr? Quem poderia de fato correr nesse país que impede mais da metade da população o tal direito de ir e vir?

Essa semana um amigo me contou que levou um enquadro. Contando o fato, eis que ele, um homem preto, estava andando na esquina de casa, no centro de Curitiba, enquanto dois homens brancos fumavam maconha. A polícia estava ali e, ao tentar encontrar quem produziu o cheiro de maconha, dentre os três, revistou o homem preto.

Meu amigo conhece na carne, infelizmente, o racismo. Eu conheço, um pouco pelo menos, o sistema de justiça penal.

Enquadro para quem não sabe é o nome dado popularmente para ser abordado e revistado pela polícia. A utilização da palavra enquadro não é à toa, o significado da expressão é evidente: enquadrar alguém, adequar, emoldurar. Na linguagem de quem é enquadrado, resulta o obedecer, muitas vezes a punição antecipada apenas por existir, quando a escolha do ato não for baseada em um fato, mas sim sobre quem pode ser aleatoriamente intercedido, tocado, revistado, constrangido ao desemparo da lei. Neste sentido, de tanto ouvir sobre as experiências das pessoas presas com as abordagens, aprendi que quando for assim descrita a abordagem, se a pessoa se sentiu enquadrada, e no meu exemplo claramente foi, tem-se mais uma confirmação de que no Brasil está institucionalizada a violação de direitos, direitos esses humanos, e com relação a humanos determinados, como se regra fosse.

E se estamos nesse ponto, em se tratando de violação constante de direitos, no campo penal, faz-se imprescindível o enfrentamento às abordagens ilegalmente realizadas e homologadas por agentes públicos.

O Superior Tribunal de Justiça tem se ocupado em estabelecer os parâmetros legais que autorizariam as revistas pessoais, exigindo a concretude dos elementos que serviram a fundada suspeita, conforme estabelecido no artigo 244 do Código de Processo Penal. Assim, tem-se consolidado que aparente nervosismo ou estar em local conhecido ponto de tráfico de drogas não são elementos concretos e objetivos a justificar a revista pessoal, inclusive não sendo admitidas abordagens e revistas exploratórias (“fishing expeditions”), a partir de “informações de fonte não identificadas” ou “impressões subjetivas intangíveis, pautadas no tirocínio policial”, para determinar a suspeição de certas atitudes, certas reações ou expressões corporais que denotem nervosismo (RHC n. 158.580/BA, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 25/4/2022).

Então mais uma vez sim, a abordagem, o enquadro, que descrevi aqui, é ilegal. Aliás, é preciso que fique claro antes que se pretenda justificar, sequer o encontro de objeto ilícito em decorrência de uma revista ilegal a convalida, ou seja, a ilegalidade da busca pessoal realizada sem fato que ampare a fundada suspeita não torna válida a descoberta casual de situação de flagrância feito por policiais. Resumindo o óbvio, como os tempos atuais exigem, não podem existir corpos à margem da lei.

Ainda esse ano, em 11 de abril de 2024, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 208240 / SP, reconheceu o denominado perfilamento racial.[1] No entanto, no mesmo julgamento, com relação ao caso concreto, o Tribunal, por maioria, concluiu que a revista pessoal de uma pessoa negra, a partir da qual foi encontrada 1,53 gramas de substância entorpecente em sua posse, sim uma grama, não se deu em razão de perfilamento racial.

O Ministro Relator Edson Fachin, ao contrário da maioria, proferiu o voto vencido no sentido de reconhecer a ocorrência da ilegalidade da revista em razão do perfilamento racial no caso. Consta do voto que o caso é relativo a uma revista que, segundo os policiais que a efetuaram, se deu em razão de um indivíduo negro estar próximo ao meio-fio e perto de um carro de cor clara, quando supuseram que havia a compra e venda algo, algo este não esclarecido, e decidiram se aproximar, tendo o carro saído do local e o indivíduo andado “sorrateiramente” e teria arremessado algo no chão, outro algo não esclarecido. Importante pensar a questão do perfilamento racial com esse recorte da descrição dos fatos realizada pelos policiais que efetuaram a abordagem: “um indivíduo negro” e um “indivíduo de cor negra”. Até porque nenhuma outra característica da pessoa a ser revistada foi apontada pelos policiais, além da cor da pele.

Por fim, traz-se uma última constatação, já que a provocação é no sentido de fazer entender que o sistema de justiça penal está condicionado à violação de corpos, não se pode deixar de problematizar a utilização indiscriminada de algemas e a utilização abominável dos marcapassos. Estamos em 2024 e as pessoas presas desse país, a maioria delas pretas,[2] seguem acorrentadas nas mãos e nos pés, assim como era feito com as pessoas escravizadas.

Há no Brasil a Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal que estabelece que a regra é a não utilização das algemas, mas pasmem, no país dos “enquadros”, foi a exceção que virou a regra. E não há norma legal, constitucional, convencional, como por exemplo as Regras de Mandela (Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos) que estabelecem que instrumentos de contenção devem ser limitados e existindo circunstâncias específicas,[3] que impeça uma prisão com a utilização desnecessária de algema, ou uma audiência com a pessoa apresentada ao Poder Judiciário algemada sem fundamentação concreto para isso. A retirada das algemas e dos marca-passos nas audiências de custódia que presidi, para o choque de absolutamente ninguém, em nada alterou a rotina do fórum com relação à segurança. Já ouvir apenas os passos, e não as correntes, se aproximando da sala de audiências foi uma das mais importantes efetivações de direitos que eu vivi.

Agora sim, partindo do enquadro de um homem preto e as claras violações que ele escancara, chega-se no que parece ser o ponto crucial, como se resgata uma sociedade em que não se aplicam todas as regras, aqui se tratando especificamente das normas penais, à maioria da população que é preta? Como se reestrutura uma sociedade que culturalmente se forjou numa lógica punitivista, autoritária e principalmente racista? Ora, precisamos ser claros, o que se tem no Brasil é um sistema que opera numa lógica de apagamento, de necropolítica, de morte, portanto. Apesar dos furos e dos espaços construídos com o sangue dos corpos que violamos, o movimento que impera é o do punitivismo e este tem claramente um recorte de raça.

Para quem quer que as regras que regem esse Estado Democrático de Direito sejam seguidas e protejam todas, todes e todos, não basta mais falar, é preciso agir em suas esferas de atuação, sejam elas públicas ou privadas, de modo a defender de forma intransigente que as garantias fundamentais não são regras passíveis de negociação e não podem servir apenas a um grupo. Também não adianta ter um discurso “politicamente correto”, se na prática segue compactuando com as violações.

É fácil ser discursivamente antirracista e só lembrar do “tratamento penal” que se quer, da legalidade que se quer, se precisarmos deles, para os nossos corpos brancos, claro.

Deixar que a violação dos corpos pretos seja apenas combatida na teoria, mas autorizada na prática, tem nome, e mesmo que a gente finja que não, o nome disso continua sendo racismo.

Eu não sei o que é sofrer racismo, mas eu não posso fingir que eu não vejo os corpos que o sistema penal esmaga. Não há uma justiça penal democrática no Brasil, nunca houve, porque as palavras justiça e democracia não se aplicam em se tratando de um sistema que é estruturalmente racista. Para quem quer de fato se aliar na superação dessa estrutura perversa que serve ao domínio, ao encarceramento e ao extermínio de corpos pretos, é preciso de uma vez por todas parar de ser omisso, mas não amanhã,

AGORA!

[1] Ementa: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. REVISTA PESSOAL SEM ORDEM JUDICIAL. PERFILAMENTO RACIAL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. JUSTA CAUSA. NECESSIDADE DE ELEMENTOS INDICIÁRIOS OBJETIVOS. PROIBIÇÃO DE ABORDAGEM POLICIAL COM BASE EM ESTEREÓTIPOS DE ORIGEM, RAÇA, SEXO, COR, IDADE OU OUTRAS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO. ORDEM DENEGADA POR MAIORIA. TESE DE JULGAMENTO APROVADA POR UNANIMIDADE. 1. A Constituição Federal protege a intimidade e a privacidade como direitos individuais (art. 5º, X). Também prevê como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade justa, plural e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV). 2. A legislação processual penal reclama para a busca pessoal sem ordem judicial a presença de justa causa fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa a ser abordada esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito (art. 244 do CPP). Precedentes do STF. 3. O Estado brasileiro comprometeu-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica (Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial). 4. O perfilamento racial na atividade policial ocorre quando as forças de segurança utilizam estereótipos baseados em raça, cor, etnia, idioma, descendência, religião, nacionalidade, local de nascimento ou uma combinação desses fatores, em vez de evidências objetivas, para submeter pessoas a revistas ou atos de persecução penal. 5. A busca pessoal baseada em filtragem racial viola a Constituição Federal, a legislação pátria e os compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil. 6. O Tribunal, por unanimidade, aprovou a seguinte tese de julgamento: “A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física”. 7. No caso concreto, o Tribunal, por maioria, concluiu que a revista pessoal do paciente não ocorreu em razão de perfilamento racial. Ordem de habeas corpus denegada. Vencidos o relator, ministro Edson Fachin, e os ministros Luiz Fux e Roberto Barroso, que concediam a ordem. (HC 208240, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 11-04-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 27-06-2024 PUBLIC 28-06-2024)

[2] Presos no Brasil: 96% homens, 48% pardos, 30% sem julgamento: o perfil dos detentos no Brasil – BBC News Brasil

[3] Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Regras de Nelson Mandela)

ANA CAROLINA BARTOLAMEI RAMOS – Juíza de Direito Substituta do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-PR. Coordenadora Adjunta do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSC – do Fórum Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Supervisora da Central de Medidas Socialmente Úteis – CEMSU do Fórum Criminal da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Colaboradora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF/TJPR).

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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