Por Jorge Folena –

Na segunda semana de abril de 2022 realizou-se a 3ª Conferência da Classe Trabalhadora (CONCLAT), que contou com a participação de nove centrais sindicais e apresentou um vasto programa para recuperar a força de trabalho e retomar o desenvolvimento do Estado brasileiro, tendo em vista o desmonte desenfreado e a destruição dos direitos sociais no Brasil, promovidos pelos governos neoliberais de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Assim, considero importantíssimo relembrar os princípios norteadores que deram base à Constituição de 1988, que precisam ser restaurados com urgência, de modo a devolver a efetividade aos direitos sociais. Para isso, é necessário conscientizar trabalhadoras e trabalhadores, para que compreendam que as reformas alardeadas pelo atual governo visam abolir quaisquer direitos e submeter o povo a um perverso grau de indignidade moral e humana.

Nesse passo, é necessário que a classe trabalhadora entenda o que foi ajustado na Assembleia Constituinte de 1987/1988, que introduziu princípios fundamentais para proteger a cidadania e garantir existência digna para todos os brasileiros.

A Carta promulgada em 05 de outubro de 1988 foi chamada pelo Dr. Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã, aquela que veio para proteger o povo pobre e sofrido do Brasil, massacrado, humilhado e maltratado desde o descobrimento.

O deputado Ulysses Guimarães presidiu a Assembleia Constituinte que formulou a Carta Magna. (Reprodução/FGV)

É o que se pode ver na saga de luta permanente dos povos indígenas; dos negros de ascendência africana, sequestrados em sua terra para serem aqui escravizados por longos trezentos e cinquenta anos; do caboclo da Amazônia; do nordestino retirante e sem terra; dos tantos milhões que hoje sobrevivem, de forma insalubre e sem proteção do poder público, nas favelas das grandes cidades brasileiras.

Como dito por José Bernardo Cabral, relator da Constituição Cidadã, os constituintes de 1987/1988 tiveram o cuidado de colocar na parte inicial do Texto Maior os princípios fundamentais da República e da garantia dos direitos do homem, relegados à parte final nas constituições anteriores.

Como destacou o professor Darcy Ribeiro, povo brasileiro é da luta diária pela sobrevivência; acorda muitas vezes às três ou quatro horas da manhã para trabalhar e, com sua força, construir este grande país; mas é desrespeitado pela elite nacional, que não reconhece o esforço desta gente negra, mestiça e pobre, que recebe quase nada na distribuição das riquezas propiciadas pelo seu esforço e trabalho.

A Constituição redigida pelo Dr. Ulisses, Bernardo Cabral, Mário Covas, Florestan Fernandes, Benedita da Silva e tantos outros constituintes, é aquela que veio para reparar o autoritarismo; e, mais do que isto, para dar cidadania a quem jamais a teve, aos que sempre lutaram por um pedacinho de terra para plantar e sobreviver com um mínimo de dignidade.

Ao contrário do que tentam incutir em nosso pensamento, visando acomodar e adormecer qualquer vestígio de rebeldia contra as injustiças, o passado do Brasil é marcado por lutas históricas do povo, cuja memória é em grande parte escondida pela classe dominante do país, que, por meio da violência militar, massacrou populações indefesas, a exemplo do ocorrido na Guerra de Canudos (1896-1897), na Guerra do Contestado (1912-1916), no Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (1937) e, também, durante o regime autoritário de 1964-1985, em que se prosseguiu com o extermínio dos povos indígenas (iniciado desde o descobrimento), e durante o qual civis foram presos, torturados, desaparecidos e mortos.

O massacre continua nos dias de hoje, pelos cortes indiscriminados de direitos sociais nas chamadas “contrarreformas”, que, na verdade, deformam a Constituição Cidadã; e não dá trégua em sua perseguição contra a população negra, mestiça e pobre das favelas e periferias das cidades e do campo.

A Constituição de 1988 nasceu para abolir toda forma de autoritarismo e violência, representados pelas ditaduras do passado (1937-1945 e 1964-1985), mas esses males ainda se fazem presentes, por conta do “passado não resolvido” e do manto de esquecimento imposto sobre o extermínio dos povos indígenas e as mazelas da escravidão.

A mesma hipocrisia que visa apagar esses episódios trágicos da história brasileira se repete na indiferença demonstrada diariamente por uma sociedade apática, que não se indigna diante da crueldade de mais de 60 mil assassinatos de jovens negros pobres, por ano; que não protesta diante da ausência de proteção do Estado durante a grave crise sanitária da COVID-19, quando o chefe do governo deixou claro que para ele morrer um ou um milhão dá no mesmo.

Descaso e descompromisso são marcas características do olhar da classe dominante (e parcela da classe média) sobre a população, que foram registrados muitas vezes pela arte, como no poema “De frente pro crime”, do saudoso Aldir Blanc, em canção eternizada na voz de João Bosco: “está lá o corpo estendido no chão”.

Temos que dar fim a tanta indiferença! Está mais do que na hora de se resgatar a força originária da Constituição e retomarmos a construção do Brasil, interrompida pelo fraudulento impeachment de Dilma Rousseff.

É preciso devolver a dignidade ao povo brasileiro, que está se defendendo como pode dos males da pandemia e de um governo que o ameaça, a todo momento, com repressão policial e militar. Precisamos dizer basta a esse desgoverno, que só favorece a elite parasita, que não trabalha nem permite a justa distribuição da riqueza produzida por todos; que conspira e atua para inviabilizar a materialização dos princípios constitucionais que transformariam o país e melhorariam a vida de todos.

Estátua de Ulysses Guimarães, no Congresso Nacional: nas palavras do estadista, “na política, e em certos aspectos, os mortos governam os vivos…” (Sérgio Lima/Poder360)

Ulisses Guimarães, Bernardo Cabral e outros constituintes, ao estabelecerem os princípios fundamentais da República, pretenderam assegurar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que garantisse o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização e reduzindo as desigualdades sociais e regionais; que promovesse, enfim, o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Porém, para que essas conquistas se materializem na vida das pessoas, é preciso que, a partir da próxima eleição, a maioria comece a votar em pessoas comprometidas com esses objetivos; pois as transformações somente serão possíveis elegendo-se um presidente da república apoiado por uma maioria de senadores e deputados federais, governadores e deputados estaduais também comprometidos com as lutas em defesa dos interesses da classe trabalhadora e do país.

JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.


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