Por Ricardo Cravo Albin –
Cabe-me agradecer – e o faço com muito prazer – o crescente interesse de tantos leitores que estão a nos solicitar assuntos específicos. No meu artigo anterior abordei, a pedidos, uma crônica minha que consta de diversas antologias sobre a Índia, centrada no Taj Mahal.
Hoje, em quase sequencia, atendo a tantas outras solicitações e reproduzo relato de grande repercussão sobre a cidade de Calcutá que incluí no meu livro “Índia: roteiro bem/mal-humorado”, de 1996, editado pela Mauad.
“Ao chegar em Calcutá e – nem sei bem porque – saltou-me à cabeça o título Oh! Calcutta!, uma peça teatral boba que vi em Nova York, há muitos anos, e cuja única originalidade era apresentar cenas de nu explícito. Aquele grito dionisíaco da peça débil mental me bateu no ouvido agora, como um grito de desespero e tristeza.
“Calcutá é a mais populosa das cidades deste país superpopuloso, o que vale dizer que concentra um nível de miséria sem paralelos com tudo o que vi na Índia. São doze milhões que moram aqui.
Morar é, na verdade, um verbo absurdo e impreciso, já que, segundo o governo, um milhão de pessoas simplesmente vive nas ruas.
Segundo estimativas mais confiáveis, contudo, o dobro, ou seja, dois milhões espraiam-se pelas ruas largas ou estreitas desta cidade cinzenta e tristemente melancólica para quem quer que a conheça , com a piedade que ela merece. E se passam coisas inacreditáveis nas ruas de Calcutá.
“Na avenida principal, digamos que uma via semelhante à Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, as calçadas de pedestres não mais existem. Em seu lugar estão centenas de milhares de pequeniníssimas barracas, coberta por sujas telas de palha que medem cerca de 2×2 metros.
“Ali vivem famílias de duas a doze pessoa, em estado de miséria absoluta. Pragmatico e sem possibilidade de reverter o quadro, o governo local instalou nas calçadas – quero crer que a cada duzentos metros – pequenas fontes de água, de meio metro de altura, que são acionadas com uma bomba manual, dessas que bombeiam de cima para baixo e vice-versa.
“O espetáculo que assisti entre 8 e 9 horas da manhã, trafegando de ônibus pela avenida, é único. Dezenas de pessoas se concentram em cada uma dessas fontes d´água. Grupos de homens, seminus, tomam banho de cuecas, outros enxugam-se em toalhas encardidas ou esfarrapadas. E muitos outros escovam os dentes.
“As mulheres se concentram em seus grupos e repetem as mesmas abluções dos homens, deferindo aos cabelos, geralmente longos e lisos, cuidados especiais com escovas e pentes. As crianças acompanham seus pais em alarido: no geral estão nuas e são muito magras.
“Entre os toscos barracos, cujas frestas eu cheguei a ver do ônibus, de tão grandes, desenvolve-se um comércio paralelo também pobre mas muito ativo. São barraquinhas de verduras, de carnes, de hortaliças, de frutas. E de toda sorte de quinquilharias, como panelas velhas, gaiolas de pássaros, banquinhos, almofadas, etc, etc…
“Quanto às necessidades fisiológicas, são feitas ali mesmo. Agacham-se todos, homens e mulheres e, candidamente, deixam todos seus excrementos em frente à vala de esgoto, que corre a céu aberto e sem qualquer canalização, por boa parte da cidade. Como papel higiênico não existe por aqui – não porque seja caro, mas por não ser hábito cultural consolidado – cada um já leva sua canequinha, que fica obrigatoriamente na mão direita. Porque será sempre a esquerda que apanha a água para que o asseio individual se consuma. Quem não observa essa norma básica de comportamento, é muito mal visto em sua comunidade específica.
“A tragédia de Calcutá é agravada pelos refugiados de Bangladesh e de Cachemira, que chegaram aos milhares, durante décadas. E ainda chegam, aumentando o número dos sem moradia ou moradores de rua.
“O que faz e produz, contudo, esse assombroso exército, o das pessoas que moram nas ruas de Calcutá? Nada, ou quase. Alguns fazem pequenos biscates e ganham algumas rúpias, que já valem muito pouco. Outros comercializam quinquilharias junto aos seus próprios barracos. Os que não fazem nada mesmo vagam pelas ruas em busca de comida.
E quase sempre acabam por encontrar alimento nos lixos das feiras públicas ou nas casas de pessoas mais afortunadas, em geral generosas, – até pela religião – em oferecer um prato de comida para a subsistência do necessitado que lhe bata à porta.
“No tempo, mesmo exíguo, que passei em Calcutá, nada me pareceu tão interessante quanto simplesmente observar essa trágica experiência de vida na calçada, pois é ali, à vista de quem queira ver, que se pode observar o cotidiano como se fosse uma vitrina pública. E é.
“Vi dezenas de barbeiros e cabeleireiros em plena rua, sentados em bancos toscos como se estivessem exercendo o ofício num salão com ar refrigerado.
Vi famílias sentadas no chão, comendo e repartindo o pouco alimento.
Vi grupos de crianças brigando ou brincando desenfreadamente.
Vi homens jogando baralhos, como se estivessem em sua sala de visitas.
Vi mulheres lavando roupa e passando a ferro.
“Enfim, toda a vida de uma gigantesca cidade de dois milhões de habitantes morando nas ruas, pode ser vista, sentida e chorada a olho nú, escancarada e sem nenhuma porta.”
O subtítulo deste artigo, “Oh, Calcutta!”, pode e deve representar uma exclamação de solidariedade e consternação à maior concentração de miséria urbana que pude ver em uma cidade.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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