Por Ricardo Cravo Albin –
A pergunta inesperada me chegou dos meus ex-alunos da Universidade de Nova York, ainda interessados sobre o seminário que lá proferi a respeito dos “Letristas da MPB e a literatura do Brasil”.
O grupinho de três universitários interessados no Brasil indagava o por que o Chico Buarque proferiu a frase ‘para fel, moléstia e crime, use Dorival Caymmi’?
A resposta me renderia observações que estimei muitíssimo tentar organizar. Numa síntese, disse-lhes mais ou menos o seguinte: “Inicialmente o Chico registrou sua admiração ao velho Caymmi, prescrevendo-o como um remédio (“Use Dorival Caymmi”) contra fel e moléstias, por que? Pelo fato de que a obra do mestre baiano se sedimenta na pacificação e na harmonia dos elementos, vide “O mar quando quebra na praia, é bonito, é bonito” ou “Vento que balança as palhas do coqueiro” ou ainda “É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar”.
Na verdade, citar-se Caymmi é consagrar o poder de síntese do gênio brasileiro. E da originalidade de se ver além.
A compreensão do que possa vir a ser a palavra síntese, no seu exato sentido etimológico, filosófico e até sacro, é exercício duro para as cabecinhas cheias de caraminholas de qualquer adolescente.
Eu me lembro que foi o poeta Manuel Bandeira – ao lado de quem viajava pontualmente, na década de 50, a cada segunda-feira, oito da manhã, no bonde Laranjeiras, direção Tabuleiro da Baiana – o único que me fez entender com clareza e simplicidade o significado mais opulento da palavra síntese.
Ali mesmo no bonde número dois, formal no seu terno largo, cor de burro-quando-foge, mas paciente e paternal, o poeta respondeu à indagação quase impertinente do adolescente falastrão, metido no dólmã do Colégio Pedro II, Internato: “Meu filho, você já deve ter ouvido este novo samba de Caymmi que todo mundo está cantando, Maracangalha. Pois bem, preste atenção aos versos e observe que o lugar Maracangalha não é senão a síntese mais perfeita da felicidade, do paraíso, tal como eu tentei reproduzir na minha Pasárgada.
Portanto, meu rapaz, síntese é a abreviação final de sentir alguma coisa. Observe igualmente que a música do Caymmi é também assim, síntese…”
A partir daí, comecei a amar a obra de Caymmi, cujo trabalho de síntese reflete como pouquíssimas outras a beleza e a dignidade da música brasileira. E se bem que o poeta Bandeira não me tivesse explicitado a simplicidade que perpassa por toda a coleção de canções do nosso menestrel, logo conectei o conceito de síntese ao conceito de simplicidade, de se expressar.
Caymmi, por sinal, é de simplicidade que comove e enternece em todos os níveis. Suas letras são quase sempre curtas e despojadas de brilharecos, de fulgores, de preciosismos poéticos. Antes pelo contrário, a poesia de Caymmi é exata, enxuta, franciscana. Ele me parece – se o leitor me perdoa a comparação – um poeta do despojamento, fincado muito mais no comentário corriqueiro do cotidiano de um Manuel Bandeira, digamos, do que na grandiloqüência de um Castro Alves, tão baiana, tão exaltada, tão barroca.
De qualquer modo, ninguém mais baiano que ele na arte de viver, na sabedoria de captar a beleza, saboreando os pequenos e os grandes prazeres, gole a gole. Desse mesmo modo, ele burila e esculpe as letras de suas canções com vagar e apetência.Costuma-se dizer por aqui – neste país tão habitualmente injusto ou até desmemoriado em relação aos brasileiros ilustres – que as homenagens só chegam – quando chegam – depois que as pessoas que as merecem já morreram.
E mesmo assim, nem sempre. O país dá-se ao desperdício de abandonar filhos fundamentais ainda no velório. Nunca posso esquecer de um frase ácida (mas verdadeira, já se verá) que o saudoso Paschoal Carlos Magno – aliás, também já agora vítima da amnésia nacional – repetia todas as vezes que me visitava no Museu da Imagem e do Som: “Pior, meu caro, que ter que morrer é o Brasil te matar de novo, esquecendo a memória dos notáveis com um sem-cerimônia de vândalo predador”. Numa das vezes em que Paschoal repetia suas sábias considerações sobre a fragilidade da nossa amnésia, a tudo ouviu o poeta Nélson Cavaquinho, que tinha ido ao MIS me mostrar o seu último samba e pedir algum dinheiro. Uma semana depois o bardo da Mangueira chegava a minha sala e entoava o samba “Homenagem”, em que se apressava a clamar: “Sei que ao morrer/ os meus amigos vão dizer / que eu tinha um bom coração”. Para concluir: “mas se quiser fazer por mim (uma homenagem)/ que faça agora (e não morto)”.
Nunca me esqueço, e evoco aqui, que ao prestar ao Caymmi grande homenagem pelos seus 80 anos no MIS ele me saiu com esta pérola: “Mas será que eu mereço mesmo tanto barulho?”
Engoli em seco, abracei-o comovidamente e perguntei a mim mesmo quantos poucos brasileiros mereceriam festejos e reconhecimentos vindos tão do fundo do coração do país…
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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