Por Ricardo Cravo Albin

Recebi do embaixador Jeronimo Moscardo o livro que enuncia o titulo acima, já que havia deixado meus dois únicos exemplares na universidade de Nova York, quando lá havia feito um seminário sobre o letrista Vinicius.

Este livro celebra sua promoção a embaixador da Republica  em 2010, uma iniciativa que comoveu o país. E que teve Moscardo, então presidente da fundação Alexandre de Gusmão, um dos seus propulsionadores, ao lado do então chanceler Celso Amorin.

Convidado, elaborei para o livro um extenso texto, cuja segunda parte publico agora:

“O embriagador interesse de Vinicius pela música popular chegaria muito cedo. Não fossem seus pais músicos amadores – Clodoaldo era violonista e Lídia pianista –, eu ficaria tentado a considerar que o tio Henrique de Mello Moraes, boêmio e melômano aficcionado por samba e choro, teria sido o maior responsável por fazer registrar na alma do menino Vinicius toda a sedução pela música popular carioca. Pois foi na casa dos pais, na Ilha do Governador, onde a família Moraes passou a morar a partir de 1922, em busca de melhores ares para a frágil Dona Lídia, que o futuro poeta abriu os ouvidos – e o coração – ao choro, à seresta, à valsa e ao samba. Posso testemunhar, num encontro que promovi com Bororó, Pixinguinha e Vinicius no bar Gouveia – lá pelos idos de 1967, 1968 – que ouvi o poeta pedir a ambos que se recordassem do repertório que era executado nos saraus da Ilha em 22, onde eles iam levados pelo Mello Moraes. No que Pixinguinha cantarolou uma valsa – cujo velho nome me foge – os olhos claros de Vinicius foram ficando vermelhos e encheram-se de lágrimas. Era a música preferida de Dona Lídia, que a acompanhava ao piano enquanto o som da flauta de Pixinguinha adentrava o jardim coberto de manacás, rosas e buganvílias. O som agudo perpassava pelos tranquilos chalés da vizinhança e possivelmente chegava a atingir a praia de Cocotá, onde passeavam namorados, bêbados ou pacatas donas de casa, todos em busca do frescor da noite perfumada. Vinicius, no segundo livro que publicou, Forma e exegese, em 1935, fala da Ilha do Governador de sua infância:

Esse ruído dentro do mar invisível são barcos passando
Esse ei/ou que ficou nos meus ouvidos são os pescadores esquecidos
Eles vêm remando sob o peso de grandes mágoas
Vêm de longe e, murmurando, desaparecem no escuro quieto.

Não seria essa, certamente, a Ilha de hoje, cercada por favelas onde se homiziam quadrilhas de traficantes que se matam entre si. O poeta jamais poderia imaginar que seria aquela a mesma Ilha que hoje abriga o aeroporto internacional, cujo nome é Antônio Carlos Jobim, a maior dentre todas as homenagens prestadas a seu parceiro, o primeiro e o mais famoso dentre todos os demais.

Em 1924, pela mesma época que frequentava saraus na Ilha, Vinicius entrou no Colégio Santo Inácio, em Botafogo. Logo ingressaria no coro, confirmando o encanto pela música. Foi ali que conheceu os irmãos Paulo e Haroldo Tapajós, ambos igualmente tocados pelo fascínio da música popular. A tal ponto que colecionavam os velhos e pesados discos 78 RPM de Aracy Cortes, Vicente Celestino e dos Oito Batutas, formação orquestral liderada por Pixinguinha.

Paulo emprestava alguns desses discos a Vinicius, que os ouvia com unção na victrola paterna, entre um e outro intervalo dos pesados deveres escolares do curso que já se aproximava do final. Em 1927, cursando o último ano do Santo Inácio, o poeta esboça sua primeiríssima tentativa de fazer música popular para valer. Formou, junto com Haroldo e Paulo Tapajós, um conjunto que tocava em festinhas nas casas dos amigos. Curioso notar-se que, pela mesma época, meninos um a três anos mais taludos formavam, em outro ponto da cidade, Vila Isabel, o esboço inicial do “Bando dos Tangarás”, cujo núcleo estava também em colégio de padres, o São Bento. O conjunto era liderado por um talento precoce chamado Noel Rosa, que logo depois injetaria toda sua veia poética exclusivamente na música popular, e que tinha como parceiros Braguinha (o João de Barro) e Almirante. Enquanto Noel compunha no Tangarás sua primeira música, “Minha Viola”, na forma matuta (então muito em voga pelo sucesso do conjunto “Turunas da Mauriceia”), Vinicius estreava com um foxtrot bem ao gosto da música americana. Chamava-se “Loura ou Morena”. Portanto, em 1928, na flor dos quinze anos, ele antecipava uma singular apetência em relação a todos os tipos de mulheres:

Se por acaso o amor me agarrar
Quero uma loura pra namorar
Corpo bem feito, magro, perfeito
E o azul do céu no olhar
Quero também que saiba dançar
Que seja clara como o luar
Se isso se der, posso dizer
Que amo uma mulher
Mas se uma loura eu não encontrar
Uma morena é o tom, uma pequena
Linda morena, era o ideal
Mas uma lourinha não era mal
Cabelo louro vale um tesouro
É meu tipo fenomenal
Cabelos negros têm seu lugar
Pele morena convida a amar
Que vou fazer?
Ah! Eu não sei como é que vai ser
Olho as mulheres, que desespero
Que desespero de amor
É a lourinha, é a moreninha
Meu Deus, que horror!
Se da morena vou me lembrar
Logo na loura fico a pensar
Louras, morenas
Eu quero apenas a todas glorificar
Sou bem constante
No amor sou leal
Louras, morenas, sois o ideal
Haja o que houver
Eu amo em todas, somente a mulher.”

(Continua na próxima semana)

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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