Por Conrado Hübner Mendes –
Quando a Constituição definiu a família como “base da sociedade”, dotada de “especial proteção do Estado”, com dever de dar à criança “absoluta prioridade”, não esperava que a magistocracia levasse esses valores tão a sério. “Família acima de tudo”, até mesmo da lei e da ética pública, não era bem o que a Constituição queria incentivar.
O Estado de Direito pede Judiciário que ofereça segurança jurídica. Cidadãos precisam ter alguma capacidade de prever, a partir do que dizem as leis e decisões judiciais do passado, o que um tribunal vai decidir. Assim podem planejar sua vida, saber onde amarrar seu boi, se na Amazônia, na terra indígena ou se apenas onde a lei até ontem permitia. Previsibilidade não garante justiça, mas tem seu valor.
SEGURANÇA JURÍDICA – Bons juízes promovem segurança jurídica por meio de coerência argumentativa e da integridade procedimental. O juiz magistocrático produz segurança ou insegurança conforme o freguês. Essa volatilidade tem menos a ver com a lei. Melhor perguntar se as partes são pobres ou ricas, pretas ou brancas, afinadas ou dissonantes, com ou sem conexões de coração.
No STF, temos escassa segurança do que a corte vai decidir. Não temos ideia nem de quando o tribunal vai decidir. Uma insegurança de segunda ordem.
Mas há um meio mais eficaz de se produzir a “segurança” que a cordialidade gosta. Um meio que prioriza a família. A beleza da tradição do nepotismo é favorecer parentes. Beneficiar quem amamos e para quem desejamos o melhor que a vida magistocrática tem a oferecer.
NEPOTISMO OCULTO – Há muitas formas de nepotismo magistocrático que conseguem escapar das normas jurídicas definidoras da prática. Uma pouco conhecida é aquela que beneficia advogados da família de ministro. Se você litiga em tribunais superiores e quer rapidez e portas abertas, costuma ser muito eficiente contratar família de ministro, a nobiliarquia do processo judicial.
Para combater a prática, o recente Código de Processo Civil previu que o juiz estará impedido quando parte do processo for cliente de escritório de advocacia do “cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim” (art. 144, VIII). Uma regra básica de ética judicial em nome da imagem de imparcialidade e tudo mais.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) considerou essa regra impossível de ser cumprida, muito complexa, desproporcional e irrazoável. Por isso propôs uma ação direta de inconstitucionalidade para derrubá-la (ADI 593). Para que os parentes possam operar o direito livremente entre si.
JUIZ DE MÁ-FÉ – Ainda que o nepotismo seja fenômeno escorregadio e se esconda de muitas maneiras, e por isso regras que tentam combatê-lo sejam falíveis, essa regra é fundamental. Fachin, ministro relator, votou pela sua manutenção. Explicou: “Ainda que em alguns casos possa ser difícil identificar a lista de clientes do escritório de advocacia, a regra está longe de ser de impossível cumprimento” por um “magistrado de boa-fé”.
Gilmar Mendes preferiu o argumento da AMB. Disse mais ou menos o seguinte: esse mundo é complexo, logo não dá para aplicar a regra. E que a regra desconfia de juízes por meio de uma “presunção absoluta de parcialidade”. Sim, a desconfiança da intuição humana é uma das razões de regras jurídicas.
Gilmar também disse que a regra dá margem a manipulação do resultado, pois bastaria contratar parentes advogados para gerar suspeição em ministros. O argumento estaria certo se também não se aplicasse à hipótese contrária: se não houver suspeição que afaste o ministro da família, as partes vão contratar parentes para ter influência. Já contratam.
CONTRATEM À VONTADE – O Supremo vai decidir se prefere cultivar a nobiliarquia, na bonita tradição da magistocracia dinástica, ou conquistar algum respeito.
Se o STF anular a regra, mandará uma mensagem para empresários, partidos, minorias, ou pobres pretos presos: se o ministro é marido, contrate a esposa; se o ministro é irmão, contrate a irmã; se o ministro é pai, contrate o filho.
Se não tiverem dinheiro para essa ajuda decisiva nos tribunais superiores, rezem para “Deus acima de todos”. E parem com esse moralismo republicano.
Conrado Hübner Mendes – Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade – SBPC
Publicado inicialmente na Folha de SP. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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