Por Jeferson Miola 

Respondendo a uma pergunta do apresentador Gustavo Conde em programa de entrevista do portal Brasil 247 [8/6], discordei da hipótese de se instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as graves denúncias sobre a Lava Jato.

Capa do jornal L’Aurore de 13/1/1898 com manifesto de Émile Zola

Não porque a CPI não poderia eventualmente cumprir um papel relevante na elucidação desse escândalo que manchou o judiciário e o sistema político brasileiro, mas porque a Comissão Parlamentar pode ser contraproducente devido ao risco de espetacularização das investigações.

Além disso, e mais importante, porque é preciso ir além no encontro de contas com a verdade; trata-se de um imperativo histórico de outra natureza. É preciso avançarmos na perspectiva de um processo de memória, verdade, justiça e reparação.

Para isso, é necessário que o governo, o Congresso e o Judiciário entrem em consenso sobre a instalação de uma Comissão da Verdade sobre a Lava Jato, conforme traduziu um arguto expectador da entrevista referida acima quando defendi a ideia de ir-se além da CPI e das investigações policiais e processos judiciais já em andamento ou por serem instauradas.

A apuração plena desse que é o maior escândalo de corrupção judicial da história, como caracterizou a mídia internacional, é crucial para a reconstrução da democracia brasileira.

A Comissão da Verdade poderá examinar em profundidade o que aconteceu, com serenidade e imparcialidade dos seus integrantes e especialistas, para produzir as conclusões necessárias.

As revelações sobre as imundícies da Lava Jato cobram da justiça e da democracia brasileiras muito mais que processos penais para responsabilizar os culpados e obrigá-los às reparações pelos danos causados, o que em si mesmo será muito relevante, se de fato acontecer.

Apesar de disfarçada como uma força-tarefa nacional “exclusiva” do compromisso e do combate “heróico” contra a corrupção, e fortemente incensada pela mídia hegemônica, empresariado, políticos e militares, na realidade a Lava Jato foi um empreendimento criminoso, organizado em moldes semelhantes aos de gangues mafiosas.

A brutalidade da Lava Jato contra aqueles que eram seus alvos centrais – o presidente Lula e o PT –, tem equivalência histórica com o famoso caso Dreyfus, em que o fascismo judicial francês no final do século 19 procedeu a uma condenação ilegal, criminosa e descaradamente mentirosa daquele capitão do Exército francês de ascendência judaica .

Aquele fascismo judicial, combatido no manifesto Eu Acuso, do escritor Émile Zola, serviu de base para os estudos posteriores de Hannah Arend sobre o nazismo, que originaram a notável obra As origens do totalitarismo.

A Lava Jato desperta interesse mundial. Em grande medida porque estabeleceu conexões internacionais, sobretudo na América Latina, para proliferar o lawfare como arma política e ideológica da extrema-direita em inúmeros países.

Mas não só por isso; mas também porque é um modelo a ser combatido em todos os cantos do planeta, pois o fascismo judicial ameaça de morte as democracias e os Estados de Direito.

A gangue de Curitiba corrompeu o sistema de justiça, destroçou a economia nacional, criou sequelas dolorosas no tecido social brasileiro e influenciou decisivamente os rumos trágicos que o país tomou nos últimos anos, que culminaram com o ascenso do fascismo e dos militares ao poder.

Aquela estrutura que Gilmar Mendes caracterizou como uma “organização criminosa”, era o epicentro de uma engrenagem mais abrangente, que implicava inclusive governo estrangeiro, como é o caso dos EUA, que operou por meio dos seus Departamentos de Estado e de Justiça.

É urgente e inadiável, portanto, passarmos a limpo tudo o que aconteceu nesses tenebrosos anos de ação nefasta daquela gangue.

O Brasil ainda precisará de muitos anos – senão de décadas – para se recuperar da tragédia, da destruição e da barbárie legadas pela Lava Jato.

A instalação da Comissão da Verdade sobre a Lava Jato é um imperativo ético, histórico e democrático da luta antifascista, para que o Brasil possa se reconciliar, reconstruir sua democracia e seu sistema de justiça e finalmente se encontrar com a memória, a verdade, a justiça e a reparação.

Para, enfim, “que não se esqueça; para que nunca mais aconteça”.

JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista desta Tribuna da Imprensa Livre. Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.

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