Por Kakay –
“Você tem que aprender a respeitar a vida humana, disse o juiz. Parecia justo. Mas o juiz não sabia que, para muitos, a vida não é humana.”
–Mia Couto.
Já disse, centenas de vezes, que quando ajuizei a ação direta de constitucionalidade para discutir a presunção de inocência e que, por consequência, resultou na liberdade do Lula, o objetivo não era favorecê-lo. Era fazer cumprir a Constituição e determinar que qualquer cidadão do povo só poderia ser preso depois do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Por sinal, à época da propositura da ação, Lula não era sequer processado. O público alvo eram os invisíveis do sistema penitenciário. A grande massa dos prisioneiros é composta de negros e pobres. O negro, no Brasil, saiu da senzala e seu destino passou a ser as ruas, o trabalho no qual era explorado, a vida na miséria, os hospitais psiquiátricos e a prisão.
Naquele momento, tínhamos mais de 800 mil presos, sendo que 45% eram de pessoas sem culpa formada que poderiam, inclusive, ser absolvidas ao final do processo. E parece ser proibido discutir a necessidade dos mutirões, o aumento da abrangência dos indultos, a descriminalização das drogas, e uma política de desencarceramento, bem como enfrentar a necessidade de abolir a pena de prisão.
Entre essas várias questões que tratei em inúmeros debates Brasil afora, em artigos, em livros, assim como em programas de rádio e televisão, estava uma que ajudaria a melhorar o drama dos presídios brasileiros na hipótese de se manter a criminosa e desumana política de encarceramento: o cumprimento à LEP (Lei de Execução Penal).
O país, muitas vezes, é mesmo o da piada pronta. O governo não cumpre a lei quando se trata de dar os direitos nela estabelecidos aos detentos.
O cidadão condenado perde o direito à liberdade, mas, óbvio, mantém intacto todos os outros inerentes à dignidade da pessoa humana. É a própria lei que determina que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. E define, claro, que a responsabilidade é do Estado. O diploma legal ainda é claro ao determinar que a assistência será material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Também especifica a instrução escolar, a formação profissional, o atendimento médico, farmacêutico e odontológico.
É relevante a previsão legal no artigo 41 da LEP, dos direitos do preso:
Art. 41 – Constituem direitos do preso:
1. alimentação suficiente e vestuário;
2. atribuição de trabalho e sua remuneração;
3. Previdência Social;
4. constituição de pecúlio;
5. proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;
6. exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;
7. assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;
8. proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;
9. entrevista pessoal e reservada com o advogado;
10. visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;
11. chamamento nominal;
12. igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;
13. audiência especial com o diretor do estabelecimento;
14. representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;
15. contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
16. atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.
E, no mundo ficcional do sistema penitenciário no Brasil, o Estado descumpre sistematicamente a LEP. Basta ver a determinação legal de “lotação compatível” com o estabelecimento de limite máximo de capacidade, respeitado ainda: cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Cada cela tem que ter área mínima de 6m2, salubridade do ambiente com aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana.
Quando nós, advogados com formação garantista e humanista, pregamos a necessidade de dar aos presos um mínimo de dignidade por parte do Estado, que tem a obrigação legal de assim agir, a ultradireita nos imputa a pecha de “advogados de bandidos” e vociferam que “bandido bom é bandido morto”. Ainda com críticas ácidas às cobranças por uma vida digna no cárcere.
Agora, com a prisão dos golpistas do 8 de Janeiro, os fascistas dizem que a comida é uma lavagem, que as filas para o banheiro são enormes, que existe um número exagerado de pessoas por cela, que não é cumprido o banho de sol e nem o acesso aos familiares e advogados. Ou seja, bandido bom deixou de ser bandido morto. Talvez essa pauta comece a sensibilizar o Congresso e, especialmente, a sociedade brasileira.
Quando vi as trágicas notícias sobre a rebelião e os ataques no Rio Grande do Norte, Estado com 5.762 vagas no sistema e com 9.848 presos, e li as reivindicações, lembrei-me de um filme de 1996 que assisti há muitos anos: “A time to kill – Tempo de matar”. Dirigido por Joel Schumacher e estrelado por Matthew McConaughey, Sandra Bullock, Samuel L. Jackson, Kevin Spacey e Oliver Platt. Conta a história de um pai, negro, que mata 2 homens brancos, bêbados e racistas, que haviam estuprado sua filha, negra, de só 10 anos de idade. Um crime cometido com todos os requintes de crueldade. A defesa, em … sua manifestação final, usou uma estratégia que muito me emocionou. Recordei-me de Mia Couto, no poema Cego:
“Cego é o que fecha os olhos e não vê nada.
Pálpebras fechadas, vejo luz. Como quem olha o sol de frente.
Uns chamam escuro ao crepúsculo de um sol interior.
Cego é quem só abre os olhos quando a si mesmo se contempla.”
O advogado se aproximou dos jurados e pediu que todos fechassem os olhos. Ele, então, foi descrevendo com riqueza de detalhes os abusos praticados pelos 2 homens brancos na menininha negra. A emoção foi tomando conta de todos os jurados e parte da plateia. O crime se deu no sul dos Estados Unidos numa cidade racista. O detalhamento das sevícias criou um clima de comoção e aí, chorando, o advogado concluiu a defesa dizendo: “Imagine que ela é branca!”. Os jurados abriram os olhos perplexos e até assustados.
Foi o que senti quando vi a lista de reivindicações apresentada como condição para terminar a rebelião em Natal. Ao ler as exigências, pensei, imediatamente, que eram exigências feitas pela Comissão Arns, ou pela Comissão de Direitos Humanos da OAB, ou pela ONU:
“REIVINDICAÇÃO DOS DETENTOS DO SISTEMA PRISIONAL DO RIO GRANDE DO NORTE
1.Que as visitas sejam realizadas duas vezes por semana com horário começando de 8:00 até as 15:00;
2. Banho de sol todos os dias sendo realizados todas as manhãs (Das 7:00 até as 12:00) ou todas as tardes (De 13:00 até as 17:00);
3. Pedimos, com urgência, a retirada da empresa que está fornecendo a comida, pois ela está sendo servida estragada e azeda;
4. Liberar a entrada dos medicamentos de fora, pois o Sistema Penitenciário não está pagando os mesmos;
5. Colocar luzes nas celas para que seja possível fazer leitura de livros, bíblia… etc.;
6. Pedimos a entrada de ventiladores para as celas, pois a superlotação deixa as mesmas muito quente e abafadas, aqui em um Estado em que o calor é predominante;
7. Adicionar uma televisão em casa cela;
8. Remissão para os sentenciados mesmo que estes não estejam fazendo remissão;
9. Abertura de novos cursos e remissões sem por obstáculos;
10. Permissão para poder estudar dentro da cela com o uso das apostilas, já que não há agentes suficientes para levar todos os detentos para a escola;
11. Liberar a entrada da alimentação de fora em dia de visita;
12. Kits de higiene e água sanitária;
13. Ligar a água para o uso de 2 em 2 horas;
14. Superlotações: Fazer mutirões a cada 6 meses para exterminar isso;
15. Visitas 3 vezes por mês dos Direitos Humanos nas unidades prisionais.”
Então, abri os olhos e me surpreendi ao perceber que a sociedade, como no filme, mantém os olhos fechados: a lista é dos detentos do sistema prisional que sabem o que estão pedindo, pois sentem, no dia a dia, toda sorte de abuso e humilhação.
Tudo isso remete-me ao poema “Versos do prisioneiro 3”, do mestre Mia Couto:
“Não me quero fugitivo.
Fugidio me basta.
Dentro do pássaro há uma grade,
um eterno confinar de gaiolas.
Da liberdade das aves,
outros poetas falaram.
Eu falo da tristeza do voo:
a asa é maior do que o inteiro firmamento.
Quando abrirem as portas
eu serei, enfim,
o meu único carcereiro.”
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.
Publicado inicialmente no Poder360. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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