Por José Carlos de Assis –
a) DIAGNÓSTICO.
Estamos diante de uma situação de desequilíbrio fundamental entre a órbita financeira do capitalismo especulativo e predatório, e a órbita da economia real. É o que está na origem de toda a crise capitalista desde a tulipomania no final do século XVII, iniciada em Amsterdã, e logo estendida às outras capitais dos países mais desenvolvidos da Europa. Isso também se verificaria em crises recorrentes sucessivas, ao longo dos séculos XVIII e XIX, até desembocar na crise da Grande Depressão dos anos 30 do século passado e na recente crise financeira de 2007/2008, ambas iniciadas nos EUA e estendidas às economias globalizadas.
Esse desequilíbrio fundamental só poderia ter sido evitado, a longo prazo, pela aplicação do tipo de política econômica recomendado pela teoria de Finanças Funcionais, de Abba Lerner, e, na mesma época dele, pelo gênio da Economia Política britânico, Lord Keynes. Na verdade, essa ordem é invertida. Primeiro veio a receita prática de Keynes, materializada nas políticas para retirar o mundo da Grande Depressão dos anos 30, tendo sido depois conceituada por Lerner, como prevenção de crises similares no futuro. Entretanto, querelas inúteis em torno de FF e do keynesianismo e impediram que a prevenção de Lerner fosse adotada.
Antes de Abba Lerner e de Keynes, Karl Marx, o fundador da Economia Política científica e o maior dos investigadores da natureza do capitalismo, até hoje, já havia detectado a natureza última da crise capitalista. Dividindo a economia real em dois departamentos, o Departamento I, de produção de bens de consumo, e o Departamento II, de bens de produção, Marx mostrou que a crise capitalista era oriunda de um desequilíbrio de fundo entre os dois departamentos. Mas Marx conservou, em sua teoria, elementos da Economia Clássica, que não incluía as interações da economia real com a economia financeira. Pensava que a moeda era apenas um véu transparente que recobria a economia real.
O resultado tem sido crises recorrentes do capitalismo, ao longo dos últimos três séculos, fundamentalmente iguais na essência, mas diferentes na forma, nesse caso em decorrência da velocidade de comunicação entre os mercados reais e financeiros. Na época do navio a vela, as crises viajavam pelo mundo a vela; com o navio a vapor, viajavam a vapor; já na época da energia elétrica, viajavam através de ondas elétricas de telégrafo.
Hoje, na era eletrônica e da internet, são instantâneas. Daí a intensidade cada vez maior das crises, que são instantâneas, e a tremenda dificuldade do processo de sua recuperação, que deve seguir pelo caminho lento da realidade material.
Não é. A moeda interage com a economia real e se descola dela. Na era das comunicações instantâneas, esse descolamento se aproxima de velocidade infinita. Mas ainda pode ser contido, quando há forte intervenção do Estado sobre a economia financeira. Se nada, do mundo real, pode atingir a velocidade da luz, como ensina a Física, nas proximidades dela, se não há intervenção do Estado, manifesta-se o Caos. É o que estamos vivenciando atualmente. Em 1929, sob o Presidente republicano Hoover, a economia norte-americana submergiu na crise da depressão até 1933. Já com Roosevelt, democrata, houve forte intervenção e recuperação da economia, entre 1933 e 1939.
A guerra, restaurando plenamente o lado da produção e do emprego militar em face à demanda civil real, insuficiente e deprimida por causa da depressão anterior, restaurou o equilíbrio fundamental entre oferta e demanda materiais. Com o bloqueio das comunicações no mundo, devido ao estado de beligerância, a órbita financeira ficou contida e não perturbou a restauração da economia real. Isso só seria modificado no pós-guerra, quando os EUA, impondo à Inglaterra, potência hegemônica decadente, sua própria hegemonia militar e econômica, não aceitou as sugestões de Keynes de se criar uma moeda mundial, o bancor. Este seria o instrumento monetário para assegurar, pelas contas públicas internacionais, o equilíbrio dos balanços de pagamento entre os povos e, por aí, a estabilidade econômica e financeira interna dos países.
A crise de 2007/2008 trouxe um novo paradigma nas relações internacionais, pelo menos em seu início. As duas primeiras reuniões, em Washington e em Londres, marcaram a inauguração do paradigma da cooperação no mundo. Superpôs-se ao paradigma anterior da guerra, no plano militar – superado pela dissuasão nuclear -, e pelo paradigma da concorrência predatória e ilimitada no plano econômico – se superposto pela intervenção do Estado na economia. Os líderes mundiais estabeleceram acordos de cooperação interna e com outros países para lidar com a crise. Houve um início de cooperação. Eram keynesianos.
Tudo voltou à estaca zero na reunião seguinte em Ottawa, no Canadá. Houve dissensão da Alemanha, liderando a Zona do Euro, contra os EUA, que se mantiveram, com o democrata Barak Obama, na linha intervencionista e de estímulo à continuação da retomada da economia real. A estratégia funcionou ali, mas na Europa, sob hegemonia de Angela Merkel, fiscal-monetarista durona, a economia mergulhou na estagnação em que ainda permanece. O Brasil seguiu um caminho ambíguo, com Lula. Inicialmente, acompanhou os EUA: o Governo injetou R$ 200 bilhões na economia, a partir do BNDES, em 2009. A economia teve uma recuperação espetacular de 7,5% no ano seguinte. Depois, seguiu a linha das restrições fiscais da Europa: a economia, também aqui, mergulhou na estagnação a partir de 2010, acentuada com a entrada de Dilma no poder em 2011.
O que se esperar da atual crise? Livre mercado, como quer Guedes e sua equipe de neoliberais, inclusive o presidente do BC, Roberto Campos, independente da esfera política, ou a linha intervencionista de um Getúlio Vargas, JK e Geisel, que também eu defendo, de forte intervenção no mercado e liquidação do neoliberalismo? Á luz da história, não pode haver muitas dúvidas. A questão é técnica: como conciliar a restauração do equilíbrio na economia real da oferta e da demanda, garantindo a estabilidade dos preços, com a purgação da economia financeira, adotando uma linha dura de permissão da quebra dos especuladores e a salvação dos financistas responsáveis. Disso, porém, falo amanhã.
Adianto que, também aqui, estamos na iminência de inaugurar o grande paradigma histórico da Cooperação. Caminham bem articulações para se chegar a um Pacto Social que leve a um Pacto Político que estabeleça, por sua vez, um novo marco legal de intervenção do Estado na economia, enterrando de vez a ideia do mercado absolutamente livre dos neoliberais. Como disse Marx, nenhuma etapa histórica, em geral caracterizada pela oposição radical entre correntes políticas e sociais divergentes, é superada antes que o velho esteja no ponto de cair de pobre, e o novo, pronto para assumir o seu lugar.
Pergunto: nossa sociedade chegou a esse ponto? Eu mesmo respondo: creio que sim. A efetivação disso é o Pacto Social que está na iminência de ser construído.
JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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