Por Kakay –
“Todos os sentimentos puros obedecem a lei da verdade. Onde começa a mentira, principia a infidelidade, e se abre o caminho da traição.” –Rui Barbosa.
Eu havia me comprometido a não falar das joias. Existe uma enorme quantidade de outros escândalos preocupantes que devem ser investigados. Desde a crise humanitária dos yanomamis, na qual tudo leva a crer que o genocídio realmente está configurado e Bolsonaro, junto com sua família, bem como alguns assessores mais próximos, devem responder nos fóruns internacionais. Até a hipótese, agora evidente, de serem reabertas as investigações sobre os teratológicos crimes da pandemia. Além das denúncias de corrupção, peculato, organização criminosa e outras condutas suspeitas.
São várias e gravíssimas hipóteses criminosas que terão que ser analisadas e imputadas a esse grupo que saqueou o país. Ocorre que os detalhes que se avolumam na imprensa nos fazem refletir sobre o que a ultradireita pensa a respeito do papel do governante e do Estado brasileiro. Importante que eles sejam responsabilizados pelos atos claramente criminosos, mas é, também, urgente considerar o apoderamento do poder estatal por esse bando de delinquentes.
É necessário reafirmar que poucas vezes vimos um descaminho e um peculato tão fartamente documentados. Coisa de quem tinha a certeza da impunidade. A materialidade é de uma obviedade clássica. A investigação deve cuidar da autoria que, ao que tudo indica, recai sobre o ex-presidente, sobre a ex-primeira-dama e sobre as “mulas” de luxo que estão tangenciando uma coautoria.
Esses crimes, pelo que parece, poderão ser objeto de denúncia formal dentro de pouco tempo, pois, agora, já não incidem mais os poderes imperiais do procurador-geral da República. O Supremo Tribunal, em boa hora, flexibilizou o tal foro por prerrogativa de função e o presidente, depois deixar a Presidência, não mais tem o foro na Corte Suprema. Serão os procuradores de primeira instância que irão analisar os fatos investigados pela Polícia Federal. E não tem mais a possibilidade de simplesmente trocar o superintendente da PF para abafar a investigação. E nem a força do silêncio da PGR.
É a República voltando a ser republicana. Isso remete-me a Pessoa, na pessoa de Caeiro, “A humanidade é uma revolta de escravos. A humanidade é um governo usurpado pelo povo. Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito”.
Embora exista ainda muito a ser investigado, especialmente se os milionários presentes foram efetivamente “presentes” ou, uma hipótese a não ser descartada, frutos de uma corrupção no caso da venda de determinada refinaria. Não devemos, nesse caso, fazer nenhum pré-julgamento, mas é importante não deixar de empreender rigorosa e técnica investigação.
Claro que é uma questão mais complexa, pois o Estado que deu o presente, ou corrompeu, tem imunidade e qualquer investigação é altamente complexa. Por outro lado, existe uma enorme gama de pessoas envolvidas na trama e, certamente, várias delas com a mesma indignação cívica que nós. E loucos para falar o que sabem. É assim que a casa costuma cair.
Mas o que me causa profunda perplexidade é a maneira descarada com que o ex-presidente, seu ministro e assessores usaram, sem nenhum pudor, a influência do poder para cometer os crimes. Uso documentado. Uso de quem julga ter a propriedade do Estado e que pode subjugar o funcionário público sério e ético. De quem confunde, de maneira vil, rasteira e vulgar, o público com o privado. Crimes cometidos à luz do dia, gravados, com recibo e ofícios públicos, tudo próprio de quem não sabe a diferença entre o que é do Estado e o que é particular.
Vale ressaltar a importância de o país ter servidores concursados, com estabilidade e que possam acreditar no Estado a que servem. Deveria ser normal relatar a postura digna do funcionário público da Receita que cumpriu com altivez o seu papel. Não deveria nem merecer ser registrado o cumprimento de um dever. Mas, quando o presidente da República usa do seu poder para intimidar e constranger um agente público, é bom que essa questão deixe o simples dever de cumprir as normas e passe a ser tratada como uma questão de Estado. Talvez essa seja uma das razões de o ex-ministro da Economia Paulo Guedes, juntamente com seu então Presidente, assacarem contra a estabilidade do funcionário público.
Esse é um episódio a ser acompanhado com os cuidados devidos. É necessário um enfrentamento sob o prisma criminal dos evidentes desvios de conduta. Essa é a consequência mais óbvia e deverá surtir efeitos com alguma rapidez. Mas é imprescindível uma discussão para além da herança patrimonialista, um confronto da postura de quem se sente dono do Estado brasileiro. Não satisfeitos em destruir as bases humanitárias construídas com décadas de civilização, a ultradireita fascista se apoderou da estrutura do Estado para uso pessoal. Essa é a pior herança que nós iremos enfrentar.
Que a posição serena e segura do funcionário público da Receita Federal, Marco Antônio Lopes Santanna, que, juntamente com outros servidores, enfrentou o chefe daquele órgão, o secretário da Receita Federal, um tenente-coronel, um ajudante de ordem, um assessor da Presidência da República, um ministro de Estado, seu chefe e o próprio presidente da República, seja uma luz a guiar o país na busca da volta à civilização.
Como nos ensina Pessoa, na pessoa de Pessoa, “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”.
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.
Publicado inicialmente no Poder360. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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