Por Maria Lucia Fattorelli –
Perda de quase R$ 300 bilhões em 2022 apesar de ter recebido R$ 212 bilhões do Tesouro.
É muito fácil se dizer “independente” quando se recebe títulos públicos de graça do Tesouro Nacional e, ainda por cima, juros sobre esses títulos. E mais, se apurar prejuízo, ele pode ser totalmente transferido para o Tesouro Nacional.
Essa é a realidade: o Tesouro Nacional doa mais de R$ 2,1 trilhões de títulos públicos ao Banco Central, e, somente no ano de 2022, pagou a bolada de R$ 212 bilhões de juros sobre esses títulos doados. Apesar dessa benesse impressionante, o Banco Central ainda apurou um prejuízo de quase R$ 300 bilhões no ano.
O Tesouro Nacional entrega, sistematicamente, títulos públicos para o Banco Central e, adicionalmente, paga juros sobre esses títulos doados. E o que o Banco Central faz com esses títulos e esses juros? Os utiliza para remunerar diariamente os bancos, pagando juros sobre o valor da sua sobra de caixa (dinheiro da sociedade que está depositado ou aplicado em bancos, já deduzido do depósito compulsório, e que deveria retornar à sociedade por meio de empréstimos a juros baixos).
Essa remuneração aos bancos não tem justificativa técnica que se sustente, configurando uma operação parasita que denominamos Bolsa Banqueiro, o conhecido overnight, que conta com 2 instrumentos no Brasil:
- o abuso das Operações Compromissadas, operação destinada a controlar o volume de moeda em circulação e que no mundo todo não passa de 3% do PIB (e em vários países aplica juros negativos, punindo os bancos que esterilizam moeda); aqui no Brasil já chegou a ultrapassar a marca de 20% do PIB e paga os juros equivalentes à Selic, que atualmente corresponde aos juros mais elevados do mundo;
- o “Depósito Voluntário Remunerado”, que também permite aos bancos depositar sua sobra de caixa no Banco Central, que fica obrigado a remunerá-los diariamente, a taxas que podem ultrapassar a Selic.
Dessa forma, o Banco Central tem funcionado como uma correia de transmissão de recursos públicos aos bancos. Em 2022, o Tesouro Nacional pagou ao Banco Central R$ 212 bilhões de juros sobre os títulos doados, e essa montanha de dinheiro saiu do Orçamento Federal.
Além desse rombo aos cofres públicos, a Bolsa Banqueiro é extremamente nociva para toda a economia do país, responsável pela elevação brutal das taxas de juros de mercado. Afinal, por que razão os bancos abririam mão de ganhar a Selic (ou até mais), garantida pelo Banco Central e sem esforço algum, para correr riscos de emprestar às empresas e à sociedade em geral? Só o fazem a juros exorbitantes, que amarram toda a economia, provocando a desindustrialização, a falência de inúmeras empresas, além de agravar o endividamento das famílias.
Não há a devida transparência acerca do custo da Bolsa Banqueiro. Somente o valor dos juros pagos pelo Banco Central aos bancos sobre as Operações Compromissadas está destacado em seu balanço anual, no valor de R$ 133,2 bilhões em 2022. Por outro lado, os juros dos Depósitos Voluntários Remunerados estão sendo somados pelo Banco Central aos juros dos Depósitos Compulsórios (remuneração da parcela que os bancos não podem emprestar, para dar segurança ao sistema e frear a alavancagem), no montante de R$ 48,2 bilhões em 2022.
Somando-se a despesa com juros pagos pelo Banco Central aos bancos (Bolsa Banqueiro + juros sobre o compulsório), tem-se o montante de R$ 181,4 bilhões, portanto, o maior gasto efetivo do Banco Central, pago em dinheiro, e responsável pelo grande prejuízo apurado pela autarquia em 2022.
Esse gasto com juros pagos pelo Banco Central aos bancos em 2022 está muito mais alto que o valor pago em 2021, devido à absurda elevação da Selic para o patamar de 13,75% pelo Banco Central, sob a falsa justificativa de conter a inflação, que no Brasil decorre de aumento de preços administrados e alimentos, que não se reduzem quando os juros sobem!
Ou seja, mais um resultado extremamente danoso da administração do Banco Central “independente”, tendo em vista que os juros altos afetam negativamente toda a economia do país, além de impactar na chamada dívida pública em todas as esferas – federal, estadual, distrital e municipal. Por isso o limite dos juros tem que estar previsto em lei, tal como ocorre em 76 países mundo afora.
Investimento em títulos arriscados e até tóxicos
- Conforme divulgado pelo próprio Banco Central, o resultado apresentado em 2022 foi negativo, um de prejuízo de R$ 298,47 bilhões.
- Tanto o Banco Central como a grande mídia têm amenizado o resultado da desastrosa administração do Banco Central “independente”, que embora esteja sendo generosamente financiado pelo Tesouro Nacional, apresenta um rombo dessa proporção. Dizem que o prejuízo decorreu de mera variação cambial das Reservas Internacionais, omitindo o imenso gasto com juros pagos aos bancos, cuja maior parte é correspondente à Bolsa Banqueiro parasita.
- Primeiramente é preciso deixar clara a distinção entre a chamada perda cambial (que é meramente contábil, ou seja, não envolve fluxo de dinheiro) e o pagamento de juros, este sim, um gasto efetivo, pago com dinheiro repassado do Tesouro Nacional ao Banco Central.
- Em segundo lugar, precisamos fazer algumas continhas: o volume de Reservas Internacionais em dólares, no início de 2022, era de US$ 363,4 bilhões, que em reais naquela data correspondem a R$ 2,028 trilhões, pois o valor do dólar correspondia a R$ 5,5799. Considerando a valorização do real frente ao dólar, ao final de 2022, o mesmo volume de Reservas Internacionais valia R$ 1,896 trilhão, pois o dólar estava a R$ 5,2171. Verifica-se, assim, que na conversão em reais as nossas Reservas Internacionais teriam se desvalorizado em R$ 132 bilhões.
- Ocorre que na planilha divulgada pelo Banco Central, o resultado líquido com as Reservas Internacionais foi negativo, em 2022, na ordem de R$ 406,307 bilhões, valor quase 3 vezes superior à estimativa de desvalorização das Reservas Internacionais acima calculada.
- O próprio Banco Central explica que esse resultado líquido das Reservas Internacionais (de R$ 406,307 bilhões negativos em 2022) “corresponde à rentabilidade das reservas menos o custo de captação, representado pela taxa média de captação do passivo total do BCB multiplicada pelo montante das reservas”.
- Não há a devida transparência acerca desse “custo de captação”. Que custo de captação seria esse, considerando que em 2022 o volume de nossas Reservas Internacionais caiu cerca de US$ 39 bilhões, principalmente devido a intervenções do Banco Central não devidamente justificadas e variações por preço não transparentes?
Ademais, no Relatório de Gestão das Reservas Internacionais (Volume 14 | Março de 2022) consta que desde 2018 o Banco Central passou a investir as nossas reservas em derivativos de risco (Exchange-Traded Funds – ETFs), que envolvem o arriscado mercado de índices e até os tóxicos TBA (To be announced), sem a devida transparência, tendo em vista que no citado relatório o próprio BC afirmou: “Considerando que o TBA é um instrumento derivativo, a maior parte do caixa referente à carteira de MBS é investida em títulos soberanos dos Estados Unidos e computada na parcela de títulos governamentais”, ou seja, o cômputo desses derivativos de alto risco estaria misturado aos títulos governamentais que compõem as nossas Reservas Internacionais.
Quanto tais derivativos podem ter influenciado nessa imensa “perda cambial” de mais de R$ 400 bilhões em 2022? Será que aqueles derivativos de risco viraram pó? Não há qualquer informação ou transparência acerca dessa gestão do nosso patrimônio pelo Banco Central.
Outra justificativa que vem sendo dada pelo Banco Central é que, além da perda cambial decorrente da variação da moeda, estaria havendo também uma perda decorrente da “marcação a mercado” dos ativos financeiros que compõem as nossas Reservas Internacionais. Também neste quesito, não existe a menor transparência! É imprescindível que o Banco Central detalhe quais títulos se desvalorizaram, qual o montante individual de cada título e global, o percentual de desvalorização individual de cada título e global, demonstrando matematicamente as perdas alegadas e apresentando a documentação comprobatória.
Falta transparência; valor a ser pago supera orçamento de ministérios
Não é possível que o Banco Central “independente” simplesmente anuncie esse prejuízo de centenas de bilhões de reais e não haja investigação e a necessária transparência dos fatores causadores desse prejuízo. Ainda mais porque esse prejuízo pode inclusive ser completamente repassado aos cofres públicos, segundo o disposto no artigo 7º, parágrafo primeiro, da Lei Complementar 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, mas dizem que não irão fazer isso e que irão transferir “apenas” a parcela de R$ 36,6 bilhões para o Tesouro Nacional, ou seja, para sociedade pagar!
Esse valor é extremamente relevante: só para se ter uma ideia, é superior à soma do orçamento federal anual das áreas de Transporte, Legislativa, Relações Exteriores, Comunicações, Gestão Ambiental, Indústria, Comércio e Serviços, Organização Agrária, Urbanismo, Energia, Direitos da Cidadania, Cultura, Saneamento, Desporto e Lazer, e Habitação.
Ademais, o uso da “Reserva de Resultado” também não minora o dano provocado pelo prejuízo gigante gerado pelo Banco Central, tendo em vista que, tal como fez no ano de 2020, quando transferiu R$ 325 bilhões de “Reservas de Resultado” para o pagamento de gastos com a dívida pública, tais reservas que estão sendo agora torradas poderiam estar servindo para o pagamento de investimentos sociais urgentes, de interesse da população.
Por fim, essa atuação do Banco Central, prejudicial às contas públicas e ao funcionamento da economia, fere o disposto no art. 192 da Constituição Federal, que determina que “o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem (…)”. Confronta, adicionalmente, os princípios éticos que deveriam reger a sua atuação, pois “instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras” (EG, 56).
É preciso que o Congresso Nacional, onde se encontram as pessoas eleitas para representar o povo brasileiro, instale uma CPI para exigir as explicações detalhadas do Banco Central, devidamente comprovadas com documentação hábil e transparente, que possa ser acompanhada de perto pela sociedade civil, pois, afinal, é sobre o povo brasileiro que está pesando a desastrosa gestão do Banco Central em relação aos juros, ao câmbio e à nossa moeda.
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB.
Publicado inicialmente no jornal Monitor Mercantil. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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