Por Ricardo Cravo Albin –
“As verdades ou “o passado em julgado” só se definem mesmo quando os fatos que os provocaram se consolidam no dia a dia.” – Acadêmico e Embaixador Gilberto Amado (MIS em 1968).
De fato, Mestre Gilberto Amado, personagem antológico de nossa cena cultural hoje injustamente esquecido, anteciparia em 50 anos este fim de ano surpreendente na política brasileira.
A vertigem de acontecimentos se iniciou com a eleição de Lula. E o silêncio intrigante de Bolsonaro, bem como a insistência de que um golpe estaria sendo armado contra a posse do eleito. Provas eram exibidas com fartura. A partir da interdição das estradas por caminhoneiros, além da concentração de bolsonaristas em frente aos quartéis de várias cidades do Brasil. Até que por pura casualidade foi descoberto em Brasília um caminhão com explosivos prestes a perpetrar a volta do terrorismo, nos mesmos moldes do atentado ao Riocentro, ao final do governo militar. Eis que aparece um indivíduo com o nome inacreditável de George Washington dizendo-se devoto da cartilha Bolsonaro e que, com companheiros radicais refugiados em prontidão no Quartel do Exército em Brasília, pretendiam com a explosão no aeroporto intimidar o país e obrigar as autoridades a decretar o estado de sítio.
Nuvens pesadas começaram a nos sufocar a todos. Dois dias antes de cumprir seu mandato, o presidente viajou aos E.U.A em avião oficial. Sem aviso prévio e sem comunicar que não cumpriria o dever de passar a faixa ao seu sucessor.
O fator surpresa e o estranhamento nacionais bateram à porta do Vice Mourão. De onde sairiam declarações por uma nota inesperada e corajosa, até pela clareza dos argumentos. Cito o General de tão revelador que é: “Lideranças que deveriam tranquilizar e unir a nação em torno de um país fizeram com que o silêncio ou o protagonismo inoportuno e deletério criassem um clima de caos e de desagregação social… E de forma irresponsável deixaram que as Forças Armadas de todos os brasileiros pagassem a conta, para alguns por inação e para outros por fomentar um pretenso golpe. Desejo que o judiciário lute pela preservação da democracia e pelo estado de direito.”
Hoje (escrevo segunda-feira) os filhos de Bolsonaro (Carlos e Eduardo) atacaram Mourão grosseiramente: “Nenhuma novidade vinda desse que sempre disse que era um Bosta (textual)”. Ao que o General retrucou: “Não entro em pântano, nem me rebaixo. Quem não sabe ler não entendeu o vigor da mensagem de ontem.”
Comentário de amigo meu bem-humorado: “o Ano se abre quentíssimo em polêmicas. Sim, mas também o ano que revelou uma nova persona forte, a Janja, que para começar detesta ser chamada de “primeira-dama”. A ela se devem dois gols no dia da posse. A ideia de convidar para colocar a faixa no marido, fragmentos vivos da realidade brasileira: uma catadora de lixo, um menino preto de 10 anos da periferia de Brasília, um deficiente físico e o Cacique Raoni, mundialmente celebrado. E cito ainda outro ineditismo, Lula sobe a rampa puxando uma cadela preta da maior simpatia, cujo o nome Resistência se deve ao fato de ter sido sua companhia na solidão dos 580 dias da prisão recente na Polícia Federal. O segundo gol de Janja creio ter sido o show com dezenas de artistas, horas a fio, na Praça dos Três Poderes. Que se encerrou com o último discurso de Lula.
Alias, a primeira fala no Congresso Nacional e a segunda no parlatório foram incisivas: “A herança maldita que recebo é estarrecedora. Vou imprimir centenas de cópias do apurado pelo governo de transição e distribuir fartamente ao Congresso e aos formadores de opinião. E mais: A morte de 700 mil pessoas na pandemia será devidamente apurada. Mas com todos direitos de defesa assegurados.” Ao que a multidão na Praça gritou peremptória: “Anistia não!”. Lula reverbera ainda: “Chega de armas, fake news, apropriação do verde e amarelo, desmantelamento do Estado Brasileiro, da Educação e da Cultura, à Saúde ou à Política Externa. Li meu discurso feito aqui mesmo em 2003 e comprovei, o Brasil andou para trás. A desigualdade e a fome parecem ampliadas. Aspiro, sim, a um direito de sonhar. Mas também o de comer, o de morar, de escolas e roupas para os filhos! Insisto: a fome é filha da desigualdade.”
Com toda razão, o colunista Merval Pereira publicou hoje artigo de título definidor “O presente de Bolsonaro a Lula”. Nem mais, nem menos… Até pela generosa repercussão na imprensa mundial da substituição do Presidente que sai pela simbologia do povo do Brasil.
Hoje, segunda-feira, Lula recebeu mais de duas dezenas de Chefes de Estado, entre os quais o Presidente da Argentina (o primeiro país a ser visitado, obedecendo antiga tradição) e o Rei de Espanha. Além do Presidente de Portugal, que se acudiu de lembrar a Lula (o que este cronista já fizera ao registrar há semanas sua eleição) da entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque. Até porque é o maior prêmio literário das duas pátrias em conjunto. Ainda não recebido pelo premiado, por discordâncias entre Chico e o então presidente.
Ou seja, vamos desfazer os nós.
E viver em paz.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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