Por João Batista Damasceno –
O poeta Thiago de Mello expressou na forma escrita uma das mais emblemáticas expressões do sentimento de quem se sente oprimido.
É o poema, que também nomina um livro seu, “Faz escuro mas eu canto”, assim versado: “Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar. Já é madrugada, vem o sol, quero alegria, que é para esquecer o que eu sofria. Quem sofre fica acordado defendendo o coração. Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia”.
O mundo do trabalho, acuado pelo capital que gera fome, desigualdades, miséria, desamparo, desemprego e redução da renda da classe trabalhadora, resiste com a certeza de que amanhã será um outro dia.
Thiago de Mello expressou o sentimento daqueles que almejam o dia seguinte, mas também daqueles que – certos do futuro que construirão – levantam cedo para suas atividades produtivas e escreveu: “Madrugada camponesa. Faz escuro ainda no chão, mas é preciso plantar. A noite já foi mais noite, a manhã já vai chegar”.
Pouco importa se o trabalhador acorda de madrugada para semear ou se é operário que acorda para ladrilhar. Sair da cama e encarar o batente é assunto urgente. É expressão da vida no mundo do trabalho. Em sua constante luta pela sobrevivência os componentes do mundo do trabalho almejam justiça. Daí ser comum ouvir que “amanhã será um outro dia”.
A frase está contida na expressão do também poeta Chico Buarque, que assim se expressou na música “Apesar de você”: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? Água nova brotando e a gente se amando sem parar! Quando chegar o momento, esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juros. Todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro. Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar. Você vai pagar e é dobrado, cada lágrima rolada nesse meu penar.
Tanto o poema de Thiago de Mello quanto a música de Chico Buarque que – segundo dizem – é também autor de Roda Viva, expressam a certeza no futuro, sem o que não cantaríamos no escuro, nem acordaríamos – quando ainda escuro – para semear ou ladrilhar. É a certeza de que amanhã será um outro dia, que a noite já foi mais noite mas a manhã já vai chegar, o que nos embala a declamar:
“Faz escuro, mas eu canto”.
Foi com estarrecimento que entrei na mostra itinerante da 34ª Bienal de São Paulo, exposta no Museu de Arte do Rio (MAR), e constatei que o título ‘Faz Escuro mas eu canto’ não era creditado ao seu autor. Embora o curador da mostra no MAR, Jacopo Crivelli Visconti, cite Thiago de Mello num texto ao lado de outros textos, não está a Bienal eximida de citar o autor no título da exposição e na ficha técnica. O MAR cede o espaço e a organização é da Bienal. A esta cabe a responsabilidade pelo creditamento autoral.
Vários textos são expostos na mostra, mas em apenas um há referência ao poeta amazonense. Num deles, o presidente da Fundação Bienal de São Paulo explica que o objetivo da mostra é ampliar o acesso dos diferentes públicos pelo país e que por isso estavam realizando mostras itinerantes, com recortes da Bienal de São Paulo. E mais. Diz que as mostras itinerantes apostam na arte e no seu impacto positivo no campo da Educação e da Cidadania. Mas como falar em cidadania se o elementar dever de nominar o autor da obra juntamente dela é desatendido?
A lei é clara. O nome do autor da obra deve estar explicitamente citado junto dela. Texto, foto, pintura, assim como toda obra, devem ser creditados aos autores. Thiago de Mello expressou as dores, as lutas e as certezas de vitória do mundo do trabalho. O que os responsáveis pela exposição devem fazer é lhe dar o crédito devido. Assim como a classe trabalhadora que tudo produz deseja o que é seu, o poeta igualmente tem o direito de ver-se nominado em sua obra. Mais que direito autoral é o direito à dignidade de quem colocou parte da sua vida num poema e nas lutas que travou em prol da dignidade da pessoa humana.
Em seu texto, exposto na mostra, Visconti escreveu sobre a arte como um campo de resistência. Apesar das trevas que se abateram sobre tudo o que expressa cultura, civilidade e amor nos últimos anos, a certeza de amanhã será um outro dia é que nos animou a cantar, a resistir e a esperançar, mesmo no escuro.
JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.
Texto publicado inicialmente em O Dia. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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