Por Jeferson Miola –
O general e vice-presidente Hamilton Mourão convocou rede obrigatória de rádio e TV para, na condição autoproclamada de “Senhor Presidente da República em exercício”, fazer um pronunciamento faltando menos de quatro horas para o fim do desastroso governo militar.
Ao que se sabe, Bolsonaro zarpou sem deixar documento assinado transmitindo o exercício da presidência ao vice Mourão. E Bolsonaro tampouco oficializou ao Congresso Nacional sua saída do país.
É uma situação institucional inusitada. O ato dele pode ser entendido tanto como fuga, ilícito agravado devido ao uso ilegal de meios e recursos materiais do Estado brasileiro; como o abandono do cargo presidencial.
A formalidade de transmissão do cargo não é um mero procedimento burocrático-formal, pois representa o rito jurídico que assegura o exercício legítimo de poder a quem de direito, quando da ausência temporária do titular do cargo.
O presidente da República possui competências privativas [artigo 84 da CF] que são exercidas exclusivamente por ele ou, nas suas ausências temporárias, pelo vice-presidente, desde que legalmente constituído para o exercício da função.
Não fosse assim, qualquer vice poderia, a qualquer tempo, se autoproclamar presidente e usurpar o poder do titular.
Se não houvesse a necessidade de comunicado formal por iniciativa do próprio presidente, a qualquer momento algum canalha a serviço da tirania poderia declarar o abandono da presidência para usurpar o poder – tal como fez o senador Moura de Andrade na madrugada de 2 de abril de 1964, quando mentiu que Jango tinha abandonado o país para falsamente declarar vaga a presidência e, com isso, propiciar o início da ditadura sanguinária que durou 21 anos.
A transmissão do cargo, por isso, seria o requisito formal para que Mourão pudesse exercer temporariamente a presidência, mesmo que por cerca de 30 horas.
Sem o ato formal de transmissão do cargo para Mourão, a fuga do Bolsonaro à cidade da Disney, nos EUA, cria um vazio institucional, pois o general não passou a ser, automaticamente, o presidente em exercício.
Mourão continua como vice-presidente – uma função auxiliar e dependente de comando do presidente, como definido no artigo 79 da Constituição: “O Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais”.
Do ponto de vista constitucional e institucional, portanto, Mourão fará um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV não como o “Senhor Presidente da República em exercício”, mas como um general do Exército no comando do governo militar. Algo totalmente absurdo.
Se fosse de fato presidente em exercício, Mourão prezaria a democracia se entregasse a faixa presidencial ao presidente Lula, mas não fazendo um pronunciamento extemporâneo e inútil.
O conteúdo do discurso importará menos que o significado simbólico do pronunciamento, que simboliza uma espécie de epílogo do governo militar; o último ato do desgoverno da barbárie, da destruição, da corrupção, do ódio e do terror.
É como se o general – um superior hierárquico do capitão; alguém detentor da patente hierárquica com poder de mando real sobre as hordas – viesse a público para reconhecer a derrota do partido dos generais na batalha de 30 de outubro e, ao mesmo tempo, reiterar a continuidade da guerra fascista contra a democracia, que tem nos estamentos militares um componente central.
JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista desta Tribuna da Imprensa Livre. Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.
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