Por Roberto Amaral –
Estamos, pois, diante de uma peça de operação política destinada a engrossar as águas do continuísmo militar.
Em circunstâncias de normalidade política, que o país desconhece desde os idos de 2016, tratar-se-ia de documento sem maior relevância. O debate que reclama não decorre, portanto, do seu volumoso conteúdo, mas do fato de o “projeto” vir a público respaldado por instituições comprometidas até o gorgomilo com o atual governo, vinculadas que estão à sua gênese, à tomada do poder em 2018 e, agora, ao continuísmo golpista anunciado em prosa e verso pelo capitão, e acolitado pelos seus engalanados. Estamos, pois, diante de uma peça de operação política destinada a engrossar as águas do continuísmo militar. É disto que se trata. No mais, temos um texto muito ruim, confuso na forma, prolixo, repetitivo, ridículo nas proposições; suas análises partem de pressupostos grosseiramente falsos, e as propostas (o “programa de governo”) revelam a paranoia anti-esquerdista, de rendosa indústria, velha mazela que afeta a chamada comunidade militar. O texto ainda fala – pasmem – em “ameaça comunista”.
Reporto-me ao “Projeto de nação”, editado pelo Instituto Sagres, associado ao Instituto General Villas Bôas e ao desconhecido Instituto Federalista. A coordenação geral é do general Rocha Paiva.
Visto do ponto de vista político, como algo que pode ser considerado estratégico “balão de ensaio, o “projeto de nação” (de fato um ambicioso programa de governo que se estende de agora até 2035!) é representativo da média do pensamento (mais precisamente: das distorções ideológicas) dominante em nossas casernas, o que dá a medida das ameaças que pesam sobre a democracia brasileira, frágil como o lume de uma vela.
Expõe o projeto de ditadura autobatizada de “conservadora-liberal-evolucionista-antiglobalista” (sic), em gestação, o que não nos diz nada de novo, até porque seria uma contradição em termos requerer novidade do pensamento de uma direita dependente ideologicamente, como a nossa. O “projeto de nação”, ao fim e ao cabo, resume-se à transformação desses quase quatro anos de tragédia bolsonarista num programa de governo que não nos deixaria antes de 2035.
O que terá levado os militares à produção e divulgação desse verdadeiro catecismo de má conduta?
Pela voz dos fardados, a casa-grande anuncia o que pretende para os próximos 13 anos. Mandões, donos da verdade, da História e da pátria, os chefes militares, sempre a serviço da manutenção do statu quo, dizem o que deve ser a sociedade, a nação (que ousam pretender moldar!), o país, o governo, o futuro enfim. Os militares que ditaram o caos no qual nos enredamos, forcejando para dele livrar-nos pelo processo eleitoral, planejam agora sua retificação formal. Dominação com ares de ciência.
O conglomerado de erros começa com o próprio título da peça, ensimesmado, autoritário, prepotente e revelador de crassa ignorância das lições mais elementares de ciência política e história. As fileiras, que intentam reescrever a História, redefinir democracia e liberdade (condicionadas pela “disciplina” cívica), refazer o Estado e impor um novo direito e uma “nova ordem”, pretendem nada mais nada menos do que refazer a nação, e para tal efeito apresentam um “projeto”. Ora, nação não se projeta, não se constrói, nem se reconstrói, não se predefine, não se pré-constitui. Fenômeno histórico-social de existência autônoma, a nação é ser vivo, existe por si mesma (Ernest Renan, “O que é a nação” 1882). Não se improvisa, não se constitui pelo decreto das baionetas. Não se confunde com o país nem com o Estado. Não é um território, nem uma fronteira. Como é que os senhores a querem talhar?
O audacioso projeto parte de pressupostos que não demonstra (por exemplo: a sociedade brasileira é liberal-conservadora) ou de invencionices paranoicas para justificar alternativas autoritárias. O discurso ideológico, enredando os interesses da classe dominante, acusa de ideológica toda e qualquer visão que não se enquadre nos estreitos limites do pensamento autoritário-conservador. Importa da direita trumpista o conceito de “guerra ideológica” e acusa a esquerda de movê-la entre nós.
O ponto central da análise canhestra aponta como fonte de todas as mazelas nacionais, da corrupção ao subdesenvolvimento, a “ideologização nociva dos sistemas de ensino e de cultura, com os escalões superiores dominados por lideranças ideológicas, radicais e sectárias, não democráticas, o que colabora para a polarização da Nação, enfraquecendo sua capacidade de enfrentar o jogo do poder mundial.” Olhando e descrevendo um país que só tem rosto no imaginário paranoico, os militares falam de um Brasil no qual nossas crianças sofrem “com a ideologização do sistema educacional, com a doutrinação facciosa efetuada por professores militantes de correntes ideológicas utópicas e radicais” que submetem as crianças a “agressões físicas, mentais e psicológicas.” A alternativa, pregam, é “combater a revolução cultural promovida pelas correntes ideológicas radicais” (…) nos três níveis da Educação”, mediante, por exemplo, valorização da disciplina dos alunos. Trata-se, aliás, de experiência já testada. Com efeito, o único programa educacional do bolsonarismo em funcionamento cuida de fazer estudantes marcharem e baterem continência, como se soldados fossem, em escolas transformadas em arremedos de quartéis.
Não poderia faltar a voz do agronegócio condenando “as campanhas internacionais caluniosas” que visam a “comprometer a imagem do Brasil como não cumpridor de critérios de preservação ambiental”. A pauta ambientalista, longe de cuidar da preservação da natureza, como se anuncia, estaria a reboque de interesses estrangeiros. Tudo o que se sabe de desmatamento e depredação ambiental, portanto, passaria doravante ser invencionice de governos estrangeiros e ONGs por eles financiadas.
O “projeto de nação” da caserna extremista fala pelo que explicita e fala muito quando silencia. Denotativa da deformação profissional-ideológica das forças armadas de que dispõe o Estado brasileiro é a pobreza das poucas páginas dedicadas a segurança e defesa nacional, que, supostamente, é/seria o que as justifica. O tema se esgota em pobres duas páginas, capituladas após divagações sobre a “Integração da Amazônia ao Brasil”, e nada nos diz, seja a propósito do conceito geral de “soberania nacional”, seja daquilo que se poderia chamar de “doutrina nacional de defesa”, seja mesmo de logística e estratégia. Mas não é de todo insatisfatória a leitura, pois o último item registrará a “Baixa integração das Forças Armadas no desenvolvimento de projetos estratégicos voltados diretamente à defesa nacional, dispersando recursos e comprometendo a eficácia operacional”.
A confissão de ineficiência e mediocridade salva a leitura do lamentável documento.
Lira não tem vergonha – O presidente da Câmara dos Deputados, expressão anacrônica de jagunço alagoano, assumiu como meta ameaçar o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ). Como se viu no último dia 31/05, após o inefável Arthur Lira anunciar que pretende viabilizar a privatização da Petrobras por meio de lei ordinária, assim driblando as dificuldades de uma emenda constitucional, o deputado fluminense, denunciando a chicana, lhe fez a pergunta indispensável: “O senhor não tem vergonha?” Tosco e autoritário, réplica malfeita dos coronéis da República Velha, Lira deixou de lado a obediência que deve à Constituição Federal e, após cortar o microfone do parlamentar, ameaçou acionar os seguranças para retirar o oponente do plenário. Em seguida, terceirizou a tentativa de intimidá-lo por meio de representação ao Conselho de Ética: a tarefa coube ao notório Valdemar Costa Neto, presidente da legenda que abriga o capitão Bolsonaro. O tiro pode sair pela culatra: pela conduta abusiva, Lira foi denunciado por Glauber à Corregedoria da Casa, e pelo seu partido, ao mesmo Conselho de Ética. Ali, se a legalidade prevalecer, ficará claro qual dos dois viola o dever de promover a defesa do interesse público e da soberania nacional, obrigação que o Código de Ética e Decoro Parlamentar do colegiado impõe a todos os deputados e deputadas.
Rosa da Fonseca – Beijo a alma invicta da companheira que partiu, legando-nos o exemplo de uma vida dedicada à defesa dos “humilhados e ofendidos”.
(Colaboração de Pedro Amaral)
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes). Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do PSB. www.ramaral.org
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