Por Alcyr Cavalcanti –
Seguiremos a máxima da ABL que é unir tradição à modernidade (Merval Pereira)
O jornalista e escritor Merval Pereira assume a presidência da Academia Brasileira de Letras/ABL, em uma nova etapa de sua brilhante trajetória. Conheci Merval quando trabalhei em O Globo no final dos anos 70. Era um jovem repórter em uma época de uma redação com excelentes repórteres e que tinha como editores Luiz Garcia, José Augusto Ribeiro e Henrique Caban. O clima era de cordialidade entre todos da redação, extremamente necessário em tempos obscuros de uma falta de liberdades, impostas pelo regime militar. Todos se conheciam, havia um bom ambiente de relacionamento geral.
Em um salto temporal, fui encontrá-lo nos anos 90, mais precisamente em 1992, eu já estava no glorioso departamento fotográfico do Jornal do Brasil, agora sob a editoria de Rogério Reis, e Merval como editor do Jornal, com plenos poderes. Estávamos nas finais do Campeonato Brasileiro de Futebol, a grande final era entre Flamengo x Botafogo que tinham feito as melhores campanhas. Eu tinha feito o ultimo treino do Flamengo em uma sexta feira e tinha tido a sorte de ter registrado a sequência do zagueiro, Junior Baiano se contorcendo em dores, Merval aproveitou a foto na primeira página do jornal e me cumprimentou na redação. Veio o grande clássico de domingo, Maracanã superlotado, ainda com mais de 150 mil pessoas antes de ser transformado em uma “Arena” segundo os padrões da FIFA. Era época em que os grandes jornais, mandavam equipes numerosas para não perder nenhum lance. O editor adjunto da Fotografia Flavio Rodrigues, coordenava a equipe numerosa, talvez, se não me falha a memória uns dez fotógrafos ao todo, para cercar por todos os lados. Havia a grande recomendação de caprichar nos dois times posados, um deles seria o campeão. Para isso antes do jogo começar havia a clássica imagem de todos os jogadores e comissão técnica em uma pose extremamente rápida. Seria editado um pôster, para os leitores guardarem como recordação. Foi fornecido a um grupo de fotógrafos filmes de baixa sensibilidade, 50 iso, para dar mais nitidez na imagem. Era uma tarde escura, nuvens de inverno cobriam o estádio, para desespero de nós fotógrafos submetidos à horrorosa luz de penumbra do estádio, diziam as más línguas uma exigência da TV Globo que não queria sombras na transmissão. Como existem ordens para não serem cumpridas, percebi que havia pelo menos três fotógrafos que haviam colocado o filme de 50iso na câmera. Simplesmente ignorei a determinação e continuei com filme de 1600 iso, um filme adequado para aquela luz mortiça. Para relaxar um pouco, pois ficamos sempre tensos para não perder nenhum lance, onde qualquer descuido pode ser fatal, fui para um outro canto para conversar com meu amigo de longa data Hipólito Pereira que estava coordenando a sucursal do Estado de São Paulo no Rio. Embora em uma conversa amigável estávamos atentos ao que ocorria nas arquibancadas, já havia feito um registro de alguns personagens exóticos, geralmente da torcida do rubro negro carioca na geral do estádio. De repente, um barulho, estranho, gritos, gemidos, tivemos a reação instintiva, virar apontar, fazer o foco, calcular a luz e disparar, o momento único fugidio, em frações de segundo, um tempo que não volta mais. Somente nós dois registramos o momento, um torcedor ágil como um gato, um acrobata das arquibancadas, consegue reverter a queda e subir para aquela massa de pessoas que se empurravam para não cair. Quatro não tiveram a mesma sorte morreram, mais de 40 ficaram feridos devido à uma irresponsável superlotação. Milhares de pessoas se espremendo, poderiam ter morrido muito mais pessoas que empurravam uma frágil e mal construída grade de segurança.
Como resultado “o maior estádio do mundo ficou interditado alguns meses”.
Mandei os filmes, continuei a fotografar a partida, que inexplicavelmente foi realizada, felizmente não morreu mais ninguém. Ansioso voltei para o jornal, quis ver meu filme, a queda estava lá, em alguns fotogramas, de mais de oitenta fotógrafos no Maracanã, só Hipólito e eu conseguimos a proeza. Merval entra cheio de ansiedade no laboratório e reclama da demora em ampliar as fotos e me pergunta se mais alguém tinha feito, eu respondi que não sabia, acreditava que talvez só mais um ou dois, talvez. Ligaram para o Jornal dos Sports, para a Ultima Hora, nada, ninguém fotografou. Merval muito nervoso pelo prazo de fechamento e pela importância da imagem reclamava, então disse a ele simplesmente “Merval, isso aqui é o JB, é assim mesmo, mas fica tranquilo no final vai dar certo, sempre temos a melhor foto”. Ele voltou pra redação e teve de esperar, mais um tempo, o necessário para secar as fotos. Quando viu a bela imagem bem ampliada exultou com um largo sorriso e mandou colocar em destaque na primeira página. Foi um registro histórico, vários livros sobre os 50 anos do estádio utilizam a imagem. Também uso em exposições, durante aulas e acrescento aos mais novos: “É necessário atenção, olho vivo, as situações sociais acontecem antes, durante, ao final da cobertura, e às vezes até depois”.
É a essência do Fotojornalismo, o momento único que não se repetirá.
Lembrem do velho pai da dialética Heráclito de Éfeso: “Tudo flui, nada para, não nos banhamos duas vezes no mesmo rio”.
ALCYR CAVALCANTI – Jornalista profissional e repórter fotográfico, trabalhou nos principais jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo e em agências de notícias internacionais. Bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ) e mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor universitário, ex-presidente da ARFOC, ex-secretário da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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