Por José Macedo

“A única luta que se perde é a luta que se abandona” (José Mujica, ex-guerrilheiro Tupamaro e ex-presidente do Uruguai)

Desde, minha infância, motivado por ter nascido no Sertão baiano, cidade próxima à Canudos, interessei-me pelas causas e os efeitos da Guerra de Canudos. No meu aniversário de 10 anos, meu pai levou-me à Canudos. Vi a cruz de madeira, no meio da praça, cravejada de bala. Fiquei curioso, ouvi histórias, narradas por idosos, comprei livrinhos de Cordel, vendidos nas feiras, acompanhado de minha mãe que, nunca, criou obstáculo para comprá-los. Em casa, eu lia aqueles folhetos, meu pai ouvia orgulhoso e em silêncio. Foram minhas primeiras leituras. Nunca mais, parei.

Não sei do que fizeram da Cruz da praça de Canudos. Certamente, após a construção da barragem (o imenso lago, açude de Cocorobó), construída pela ditadura de 1964, deixando aquela Cidadela, palco da injusta, sangrenta e fratricida Guerra, submersa, propósito para esconder o vergonhoso episódio.

O exército brasileiro foi instrumento e o principal agente agressor que, impiedosamente, matou cerca de 20.000 indefesos sertanejos. Temos a missão de não deixar Canudos e o episódio da Guerra fratricida esquecidos. Há 3 anos, recebi de Adalgisa Aras 30 livros sobre a Guerra, escritos por seu pai, José Aras. Distribui-os a pessoas interessadas por conhecer nossa real história. O mais importante desses livros: “Sangue de Irmãos”, uma versão realista, nua e crua da Guerra.

Adalgisa Nady Aras de Macedo era filha do escritor baiano José Aras e tia do procurador geral da república Augusto Aras, do procurador regional da república Vladimir Aras e do desembargador José Aras Neto. (Reprodução)

Entendi seu gesto, doando-me esses livros e seu significado, ou seja, o de distribuir cultura, de preservar nossa história, além de tornar a obra do José Aras, seu genitor, mais conhecida, o que é uma justa homenagem. Entendo ser de suma importância levar ao conhecimento dos brasileiros, a quantos possamos, a história de nosso sofrido sertanejo, as injustiças, as lutas do homem do campo, sua sobrevivência.

A Guerra de Canudos é um episódio, que retrata nosso Brasil profundo, da fome, do desamparo, de violência e de injustiças, que ainda, fazem-se presentes, nesse início do século XXI. É um dever de cada um de nós, denunciar as injustiças e opressões, sejam elas do Estado, governantes ou dos indivíduos, econômica e politicamente, poderosos. O escritor, Zé Aras, era um sertanejo, nascido nas redondezas de Canudos, no final do século XIX, por isso, supera a todos que escreveram sobre o tema, o massacre impiedoso e cruel de seus ascendentes sertanejos. Em seus livros, José Aras fala e escreve sobre os desejos maiores e legítimos de seu povo, o de ter um pedaço de terra, plantar e colher, viver em paz, sem exploração, sem opressores, diga-se, em Comunidade e em família. Assim, configurou-se aquela comunidade, Canudos, o “Belo Monte”, liderada por Antônio Mendes Maciel, o Conselheiro. O latifúndio era a forma e o modo de oprimir, de exploração do homem do campo, dos pobres camponeses, dos ex-escravos, que foram largados nas estradas, morrendo de fome, de doenças, muitas delas, possíveis de cura.

Para mim, José Aras, considerando as limitações de seu tempo, foi um dos maiores escritores sobre o tema, apesar da imensa quantidade de livros e teses sobre o assunto. A Guerra de Canudos, um genocídio, praticado pelo Estado, no início da República (1896-1897), não será esquecida e não será retirada das páginas de nossa história, quiçá, da história mundial, porque a consciência coletiva não permitirá. Assim, faço essas considerações iniciais, como iniciais, enfatizando a desproporcionalidade das forças envolvidas, o Estado versus aqueles miseráveis sertanejos, desarmados e vulneráveis.

Descrevo e mentalizo o Sertão baiano e nordestino, não exagerando a inconteste fragilidade daquela gente da roça, que sabia e queria, tão-só, cultivar a terra, através de sua mais rudimentar forma que, com a vontade de viver, fazia-se valente.

Quando chegou a Guerra, alguns lavravam a terra, outros cuidavam das construções de casas e da segurança do Arraial, composto por cerca de 35.000 mil habitantes, outros rezavam, obedientes às ordens e à divisão dos trabalhos, estabelecidas por seu líder, o Conselheiro. Morreram na Guerra 5.000 militares e 20.000 civis. Canudos era a segunda cidade da Bahia, em população. Esses números são projeções, não asseguro sua precisão. A participação na Guerra era legítima defesa, própria e de terceiros, até porque não havia outra opção, era então a defesa de suas vidas. Os bravos sertanejos resistiram, até o fim do impiedoso massacre. Sabe-se que, a sobrevivência daquele povo, apesar de unido, era difícil e penosa, a maioria morria cedo e, a expectativa de vida mais longa pertencia àqueles, escolhidos pela seleção natural da espécie. José Aras (Zé Aras), um autodidata, de cultura reconhecida, descendente de sobreviventes da guerra descreveu com maestria aquele holocausto e a nódoa marcada na história de nossas instituições. Assim, Zé Aras narra, com objetividade e sentimento de sertanejo, o massacre daquela gente humilde, vitimada pela guerra injusta; narra, com a emoção de um filho da terra, sentindo-se vitimado.

Prisioneiros do arraial de Canudos após o confronto com o Exército retratado em “Os sertões”; a foto fez parte da exposição “Euclides da Cunha. Os sertões — testemunho e apocalipse”, na Biblioteca Nacional (Foto: Divulgação)

Seus livros trazem a dureza e crueldade do episódio, não estando presentes em sua narrativa qualquer liame de submissão de influências externas, sejam dos coronéis, ou do cientificismo da época, que se faziam presentes, como se vê e lê-se no célebre livro, “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. O livro, “Os Sertões”, descreve a Terra, o Homem e a Guerra, ocupa lugar de destaque na literatura brasileira e mundial. O autor, Euclides da Cunha, foi comparado a um Eça de Queiroz brasileiro, considerando seu valor literário. Para o desagrado de muitos, contratado pelo jornal “O Estado de São Paulo”, Euclides foi enviado ao local, cenário da Guerra, permanecendo, por poucos dias. Faço observações ao livro de Euclides, reconhecendo sua inconteste importância para a literatura e para a história. Quem lê o livro com isenção verá que, Euclides sucumbiu às influências cientificistas da época, o darwinismo e as teorias de Cesare Lombroso, teorias racistas e preconceituosas, descreve o sertanejo, como “homem inferior”, resultado do cruzamento, união entre o branco, o índio e o negro.

Sinto-me feliz em estar contribuindo, escrevendo este artigo, já o fiz, em outros momentos, mas com outro enfoque, missão consciente, objetivando propagar nossa história, focando o lado da opressão. Não vencemos a fome, o alto desemprego, doenças comuns, o analfabetismo, a violência e a carência alimentar de milhões de brasileiros. A Reforma Agrária, uma reivindicação necessária, antiga e prometida por seguidos governantes, nunca foi feita, face a má vontade política. As repetidas mortes de agricultores, que sonham por um pedaço de terra, envergonham a nação consciente e deixam sem futuro muitas crianças órfãs, mulheres abandonadas, à força do destino e da sorte. Que esperam esses deserdados, senão o desespero, o choro e a morte? Opto por descrever a história sofrida de nosso povo, mas sou otimista, na perspectiva de que a esperança por dias melhores não morre. Os sertanejos de Canudos nos deixaram esse legado de altivez e de luta contra o arbítrio e a opressão. Os conselheristas não se renderam, resistiram, derramaram a última gota de sangue. Aqui, não há espaço para falar de flores.

Esta história faz presente, na luta do MST (Movimento Sem Terra), que clama por justiça, pela Reforma Agrária, pela preservação de suas vidas e das famílias campesinas. O MST é a presença, no século XXI, dos conselheristas de Canudos. Os opressores de hoje, seja o Estado, sejam os donos do latifúndio ou do agronegócio não deixam de matar inocentes, não se cansam de matar famílias que querem um taco de terra para trabalhar e viver em paz. O interesse do Estado Brasileiro é o de colocar Canudos e sua exemplar história, sob o tapete, deixar no esquecimento. Por isso, construíram aquele açude e a velha Canudos ficou debaixo d’água, mas seus mortos e heróis não serão esquecidos, porque, sob as águas, gritam por vingança. Nós ouvimos em nossas consciências esses apelos por justiça e pela igualdade de direitos, como reza nossa Constituição. Nossa missão é a de pedir justiça, é a missão do MST e dos que entendem que a terra não é propriedade de meia dúzia de opressores, ávidos pelo acúmulo de lucro e por mais terras, não importando a queima e derrubada de nossas florestas.

Viva os heróis de Canudos, viva Conselheiro!

JOSÉ MACEDO – Advogado, economista, jornalista e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.