Por Gerivaldo Alves Neiva –
Durante uma reunião da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em Brasília, conversava como uma amiga juíza sobre o atraso tecnológico do Poder Judiciário e pensávamos juntos que mesmo uma pessoa que tivesse dormido 100 anos ininterruptos não estranharia muito nossos procedimentos, ritos e leis atuais. Estamos em 2009 e nosso personagem teria adormecido em 1909, início do século XX.
A República Brasileira apenas engatinhava e era governada por Afonso Pena, do Partido Republicano Mineiro. Depois de muitos mineiros e paulistas, a política do café com leite, nosso personagem dorminhoco não teria visto Getúlio chegar ao poder em 1930 e permanecer até 1945; retornar nos “braços do povo” como o “pai dos pobres”, em 1951, e não teria ouvido o “Repórter Esso” informar, em edição extraordinária, seu suicídio em 1954, consternando a nação.
Não teria vivido os “Anos Dourados”, o presidente “Bossa Nova”, os militares tomando o poder através de um golpe de Estado, parte da esquerda fazendo guerrilha e seqüestrando embaixadores estrangeiros, a luta pela anistia, a campanha das “Diretas Já” e não iria acreditar que um operário retirante nordestino governa o país através de eleições livres e democráticas por dois mandatos. E o mais incrível: tem apoio da maioria dos ricos e pobres.
Em sono profundo, nosso amigo também não teria visto os horrores de duas guerras mundiais, o holocausto, o império americano dominando o mundo e espalhando o terror em nome da democracia. Acordaria sem saber da Revolução Russa de 1917 e dos crimes de Stálin; da ascensão e queda do muro de Berlim; dos barbudos de Sierra Maestra e da Revolução Cubana; de Che Guevara querendo revolucionar o mundo e depois sua imagem ser transformada em ícone de consumo; da revolução chinesa e o surgimento de uma nova potência mundial; do neoliberalismo, das crises das bolsas de valores e do “nervosismo” do mercado. Teria muita dificuldade, por fim, para entender o que é a “globalização”.
De nada saberia sobre maio de 1968, da geração “paz e amor”, da revolução feminina, da contra-cultura, dos Beatles, dos Rolling Stones, de Janis Joplin, de Raul Seixas, Tim Maia, Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros. De nada saberia sobre a Semana de Arte Moderna, de Villa Lobos, de Tarsila do Amaral, de Portinari, de Osvald de Andrade e das loucuras de Pagu. Perguntaria quem é Macunaíma, Antônio das Mortes, Lampião, Corisco, Maria Bonita, Antônio Conselheiro, Lamarca, Marighela, Cazuza, Luiz Gonzaga, Mandela, Madre Teresa e tantos outros. Iria se emocionar, com certeza, lendo os versos de Drumond, de Manoel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Perguntaria quem é a “garota de Ipanema” e talvez seus olhos castos não conseguissem fixar uma mulher vestindo um minúsculo biquíni em Copacabana ou na praia de Itapuã.
Saberia, porém, que milhares de animais e plantas já não existem mais, que o clima no planeta está mudado, que o ar e as águas estão poluídos e que o futuro do planeta é incerto.
Não compreenderia muito a razão do transporte terrestre através de caminhões em péssimas estradas de asfalto e o abandono das ferrovias. Como entender que o mais caro é melhor para o sistema do que o mais barato? De outro lado, seria impossível acreditar que se viaja de Salvador a São Paulo em duas horas, pois quando pegou no sono havia apenas notícias de que Santos Dumont, um brasileiro que vivia em Paris, teria voado em um aeroplano chamado 14 Bis, mas também chegavam notícias da América de que os irmãos Wright tinham conseguido o mesmo feito. Depois de 100 anos, é um absurdo acreditar que essas máquinas de voar transportam centenas de pessoas pelos continentes e que também são usadas para jogar bombas na população indefesa em tempos de guerra.
Teria um grande alívio em saber que não morre mais tanta gente de tuberculose, pois inventaram um remédio chamado penicilina e muitas vidas foram salvas. De outro lado, ficaria indignado ao saber que a população pobre da África morre como moscas de uma doença chamada AIDS, pois os laboratórios (não existem mais as boticas!) que fabricam os remédios ganham muito dinheiro com essa atividade. Mesmo assim, é incrível como evoluiu a medicina! Hoje já se faz transplante de coração, cirurgias à distância e até mesmo sem cortar os pacientes. Sangrias? Nem pensar…
Como também evoluiu o concreto armado! A cidade agora é vertical. Cresce para o alto. Impossível imaginar um prédio que se mistura com as nuvens mais baixas. Impossível imaginar que o concreto armado permitisse a construção de uma barragem para segurar os rios, gerando energia elétrica para movimentar e iluminar as cidades.
E o velho “Ford T” de nosso personagem em relação às Ferraris e Porsches da atualidade rodando a 200, 300 km por hora! Algo absurdo e impensável para o mais lunático dos mecânicos.
E aquele aparelho inventado por Graham Bell, testado com espanto pelo Imperador Pedro II, que agora predomina como “celular”, manda mensagens instantâneas, tira fotos e se transforma até em televisão. Que coisa absurda! O antigo telefone também já foi “facsimile” e transmitia documentos para qualquer lugar do mundo. Mais absurdo ainda: fotografias agora são visualizadas instantaneamente em máquinas digitais. Digital? Sim, agora uma biblioteca inteira cabe na palma da mão! Todas as grandes obras de arte da humanidade cabem em um “pendrive” e não é preciso mais sair de casa para visitar os museus do mundo através da Internet, como agora se chama o oráculo dos gregos antigos. O Google tem resposta para todas as perguntas…
Que pena. São Jorge não mora na lua, pois o homem esteve lá e encontrou apenas crateras e poeira. Os marcianos também não estão em Marte e já vimos fotografias bem nítidas dos anéis de saturno. As antigas tipografias foram substituídas por modernas gráficas, o computador domina o mundo e tudo pode ser feito com ele. Tudo mesmo. Tem uns que fazem até sexo. Em uma palavra, o mundo está automatizado e informatizado. Sem máquinas e computadores o mundo pára. Até a guerra agora é feita com satélites e computadores.
Nosso personagem, no entanto, não se surpreenderia com três instituições da vida moderna. Poderia, por exemplo, entrar em uma milenar igreja católica e acompanhar sem muitos problemas a celebração de uma missa. Aliás, a estrutura da Igreja Católica é a mesma: padre, paróquia, bispo, diocese, cardeal, papa, pecado, penitência, inferno, purgatório, salvação, céu, ressurreição, Deus… Ouviria falar, é verdade, em verdadeiros cristãos como Pedro Casaldáliga e Hélder Câmara, da igreja progressista e teologia da libertação, mas a estrutura e os dogmas são os mesmos.
Poderia, também, entrar em uma sala de aula e não se surpreender muito, pois os alunos continuam sentados em filas e o professor e sua lousa continuam firmes e fortes. É certo que alguns usam equipamentos modernos nas aulas e Paulo Freire andou falando em “educação bancária”, mas o princípio geral ainda é ensinar e aprender, ou seja, o professor sabe e ensina e aluno não sabe e aprende.
No caso do ensino jurídico, depois de introduzidos os dogmas jurídicos, as teorias “objetiva”, “subjetiva” e “mista”, as lições dos veneráveis mestres, domada a irreverência e a rebeldia dos jovens, cortados os cabelos dos rapazes e transformadas as moças bonitas em senhoras de “tailleur”, sendo o aprendiz aprovado nas provas e testes, basta um paletó e uma gravata e está produzido mais um pingüim! Depois, basta decorar as leis vigentes, “passar” no teste da OAB e está formado mais um “pinguaio”, ou seja, pingüim mesclado com papagaio. O ensino jurídico se transformou em fábricas de “pinguaios”!
Na verdade, nosso amigo dorminhoco não vai estranhar muito, pois era assim desde quando a elite paulista, ainda ano século XIX, formava seus bacharéis em Coimbra e Lisboa. Passando diante de um Palácio da Justiça nosso amigo dorminhoco também não se surpreenderia muito com as leis atuais. É verdade que as Ordenações do Reino não estão mais em vigor, pois em 1917 foi promulgado um Código Civil e agora está em vigor um novo Código que passou mais de 20 anos para ser votado e foi promulgado em 2002.
Se antes de dormir, no entanto, nosso personagem tivesse lido o Código de Napoleão, de 1804, e agora comparasse com nosso Código atual, poderia perceber que a estrutura é muito parecida: cuida bem da propriedade, da família e dos contratos, mas a felicidade e a dignidade humana passam ao largo. Não teria muito problema, de outro lado, com o Código Penal, que ainda é o mesmo de 1940 e a pena principal continua sendo a prisão. Montesquieu, inspirador dos três poderes, que morreu em 1755, também não estranharia muito a nossa forma atual de governar, legislar e julgar.
É certo que os juízes não usam mais perucas. Alguns usam a toga como se fora um manto sagrado e continuam formalistas e ritualistas como há 100 anos. Nas cortes de apelação ou desembargo, nossos atuais Tribunais, as “vestes talares” tem os mesmos recortes medievais de 100 anos. Ainda são formados os “autos” do processo e tudo precisa ser escrito em folhas de papel produzidas com celulose. Os juízes ainda despacham nos autos, de caneta, determinando que o cartório “A.R. Após, à conclusão”. Como há 100 anos, com licença é “data vênia”, por exemplo é “verbi gratia”, o falecido é o “de cujus” e assim por diante. Como há 100 anos, os registros de nascimento, óbito e casamento, inacreditavelmente, em alguns locais ainda são lavrados à caneta nos mesmos pesados “livrões” e continuam sendo, tais registros, função do Poder Judiciário, como ainda o são, injustificadamente, o casamento, o divórcio e a partilha dos bens do falecido.
É certo também que a família não é mais a mesma e alguns juízes e tribunais já entendem isso, mas também para muitos juízes e tribunais a propriedade privada é exatamente a mesma de 100 anos: inviolável e sagrada. Relutam em aceitar o princípio constitucional da função social da propriedade como elemento integrante do próprio conceito de propriedade. John Locke, o filósofo do liberalismo e da propriedade privada, que morreu em 1704, também não estranharia muito nosso modo atual de tratar a propriedade.
Constatou nosso personagem, por fim, que funciona bem o que mudou, mas o que não mudou está agonizando, falido, em fase terminal, e só vai funcionar bem se passar por uma profunda transformação, a exemplo do resto do mundo.
Com um olhar aprofundado, no entanto, nosso amigo dorminhoco poderá perceber que exatamente por conta disso — da falta de mudanças — alguns poucos vivem muito bem e desejam que assim seja e assim esteja por mais 100 anos de sono, ou mais.
E assim será, desde que este sono, porém, não seja interrompido pelo barulho do carnaval dos que não querem que seja sempre assim.
Gerivaldo Alves Neiva é juiz em Conceição do Coité (BA).
Publicado inicialmente no ConJur – 21/02/2009. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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