Por Ricardo Cravo Albin –
“A contradição não consente o arrependimento e o pecado ao mesmo tempo”. (Dante Alighieri)
Quando se juntam os pensadores do Brasil, que se auto intitulam, até obliquamente salvadores da pátria, uma das questões emergenciais que os sabichões destilam é a eterna falta de moradia para todos, razão do grupo crescente dos sem teto, dos que não têm onde morar, sequer se abrigar, cujo destino certeiro será as ruas ou os espaços públicos de nossas urbes.
Certa vez, a pedido do escritor e musicólogo Marques Rebello, promovi um debate no Conselho Superior de Música Popular do MIS porque Rebello estava a elaborar tese sobre a frase mais repetida da canção brasileira e que insistia em denunciar a falta de moradia “que insultava o país”.
A frase? “Eu não tenho onde morar”, de Caymmi, nosso fraterno amigo comum, da canção de igual título, que se agregava à locução “É por isso que eu moro na areia”. O escritor havia tido a pachorra de contar as duas frases ligadas uma a outra 25 vezes seguidas. E ainda, rugia Rebello resplandecente, “vejam vocês que Caymmi insiste no seu protesto sócio musical afiançando outra verdade logo abaixo do morar na areia, todo mundo mora direito, quem mora torto sou eu”. Isso sim, é frase-síntese, e política, que o Francisco Julião deveria cantar antes de cada discurso a favor dos sem-teto. E continuava nosso Edir Marques da Cruz (seu nome verdadeiro): “Ainda ontem quando estava pela Atlântica dentro da lotação para ir cedinho dar entrevista para o Cruzeiro na ABL, vi não um, nem dois, mas dezenas de seres humanos acordando em plena areia: ou seja, a minha cidade, já ocupada nos morros pelas favelas, está agora hospedando os miseráveis nas areias de Copa. Isso só mesmo nesse desgoverno…”.
Agora, como que a contradizer em parte o grande escritor carioca, leio sobre a ocupação pelos sem-teto em um terreno de 220 mil metros quadrados na Zona Leste da capital de São Paulo, ao lado do shopping Aricanduva, considerado o maior da América do Sul. Hoje, para meu espanto, 800 famílias vivem na Ocupação Jorge Hereda e, o mais surpreendente, outras centenas (não apenas dezenas!) aguardam vaga em lista de espera. Essa recentíssima ocupação de terra tão vasta já havia sido suspensa por ação de reintegração de posse concedida pelo STF. Os leitores estão boquiabertos como eu fiquei? Se estamos todos, valeria saber que o buraco é mais profundo. Hoje já há quem calcule em 185 mil hectares de ocupação ilegal nas terras do Brasil, o dobro do que estaria assinalado há apenas três décadas, segundo o Mapeamento Anual do Uso da Terra no país.
Estudiosos concluem outro gravíssimo problema provocado pelas sempre ausentes autoridades municipais, estaduais e federais, o fato de a ocupação do solo brasileiro em vegetação nativa chegar ao número assombroso equivalente a quase três vezes a cidade de São Paulo.
Por que essa desordem, esse eterno dar para trás, ao invés de nos organizarmos? O pior: segundo arquitetos e botânicos amigos meus a tendência é da situação ir crescendo, e destruir o meio-ambiente. Por que essa maldição? Claro como água limpa: a falta de políticas públicas para o sistema de habitação do país. Um país, por certo, que não se dá o respeito de, ao menos, se proteger e elaborar um plano corajoso de habitação para milhares de miseráveis. Que falta faz o antigo Banco Nacional de Habitação dos anos 60/70. Agora atentem os leitores: após a justiça de São Paulo determinar o cumprimento da reintegração de posse emitida pelo STF, uma decisão do Ministro Alexandre de Moraes suspendeu a ação. Por que? Ora, ora, a prefeitura não teria cumprido a recomendação – justíssima e mesmo obrigatória – de prover habitações para os “invasores”, que fizeram a ocupação para não invadir os morros ou morar nas areias das praias, como na cantilena repetitiva – e piedosa- do mestre Caymmi.
Segundo arquitetos e urbanistas, as ocupações legais e ilegais evoluem no mesmo ritmo. As áreas ocupadas ilegalmente ocorrem no mais das vezes em terrenos de área ambiental protegidas por lei. No Rio, as terríveis milícias são hoje os loteadores clandestinos, explorando reservas e parques. E as favelas não param de se expandir no Rio.
Cidade ainda maravilhosa?
Agora, no limite de perder seu glorioso título, por falta de vontade política do município nos últimos 14, 15 anos. Piedade, São Sebastião, por essa convergência de contradições.
***
PS – A Editora Batel está lançando nas Livrarias da Travessa meu livro Pandemia e Pandemônio, com recomendações da escritora Nélida Piñon e dos cientistas Margareth Dalcolmo e Jerson Lima.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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