Por Lincoln Penna –
Antes de desenvolver a resposta à questão estampada no título deste texto, entendo a democracia como valor civilizatório.
E assim o faço para dizer que se trata de uma conquista da humanidade construída ao longo do tempo e da superação de regimes e práticas lesivas ao ser humano. Realidades passadas, mas que ainda se encontram presentes entre nós. Assim, evocar a democracia em primeira instância é fazer valer os avanços alcançados nas relações sociais.
Ao contrário do discurso oficial da burguesia que associa a democracia ao seu modo de produção, o capitalismo, o que deve ser entendido como democracia é precisamente a conquista do espaço civilizado dos embates políticos e ideológicos. Avanço que deixou de lado o argumento das armas a favor da arma da argumentação.
Essa questão da democracia como preceito básico da vida política, inerente ao pleno exercício das disputas de interesses de classe, precede a sua própria concepção ideológica porque na verdade é uma utopia, um vir-a-ser. A ideologia é o resultado de leitura proveniente do lugar social do qual derivam os conceitos de democracia, de modo a representar as diferentes visões de mundo que nelas estão presentes com a pretensão de dotá-la de uma identidade cara à classe em seu objetivo de poder.
Não cabe aqui debater essas interpretações próprias às classes referentemente à ideia de democracia, pois o meu propósito é situá-la nas condições aonde podem e devem ser travadas as disputas políticas e ideológicas de tal forma que prevaleçam os valores civilizatórios. Do contrário, é apostar na barbárie, que só interessa aos grupos antidemocráticos.
Nesse sentido, a democracia seria o nome que deve ser atribuído às liberdades públicas, não estando nesse aspecto associada, como princípio básico do valor civilizatório, a nenhuma classe social. Cabe a cada contendor dispor de meios com vistas à defesa de suas ideias. É nesse território que devem ser desenvolvidas as lutas de classes, que pressupõem o convencimento, a persuasão, logo a capacidade de argumentação das forças sociais e políticas nos confrontos políticos e ideológicos.
Se a democracia que temos não é compatível com os nossos desejos e a nossa própria concepção, isso não significa que não se reconheça que existe um espaço de tolerância mínima a ser conquistado através das lutas entre classes. As liberdades que desfrutamos não caíram do céu. Foram obtidas com lutas, muitas das quais com grandes sacrifícios.
Mas, mesmo não sendo partilhadas por todos em razão de fatores que impedem objetivamente a participação de inúmeros indivíduos, essa democracia nos permite que trabalhemos para aperfeiçoá-la a favor de espaços democráticos mais amplos e inclusivos do ponto de vista social.
Logo, estamos a falar de duas maneiras de se discutir a questão democrática. Em um primeiro instante considerá-la como representação das transformações de sociedades de ordens fechadas e hierarquizadas a representar estratificações impermeáveis à mobilidade social, para sociedades de classes modernas e contemporâneas abertas a essas mobilidades. Todavia, não menos injustas socialmente. Mesmo assim, abertas o suficiente para que certos procedimentos de acatamento a direitos tenham vez.
Essa mudança se deve à burguesia quando assumiu o protagonismo das transformações nas sociedades fechadas então prevalecentes.
É nesse sentido que Marx reconheceu o caráter revolucionário da burguesia, justo em razão de sua condição de classe aspirante ao poder. No poder, a burguesia construiu um arcabouço suficiente para acolher as demandas provenientes de extratos sociais que a elas se juntaram por ocasião das revoluções que projetaram sua ascensão ao controle do Estado. A Revolução Francesa de 1789 com o seu Terceiro Estado é o exemplo que marcou essa transição em direção à democracia.
A partir de sua condição de classe dominante, a burguesia construiu uma narrativa ideológica tendo em vista à necessidade de contrapor-se às classes trabalhadoras, assalariadas e subalternas. É interessante, por isso, atentar para o recente livro de Thomas Piketty, Capital e Ideologia, que examina exatamente a construção ideológica dos conceitos e valores que têm estado na condução do capitalismo para justificá-lo como um sistema de todos.
Claro está que o conceito e os argumentos a respeito da democracia fazem parte dessa construção de hegemonia, de tal sorte que ao difundi-los consegue que cheguem a ser assimilados pelos canais que veiculam essas noções. Buscam, com isso, universalizar a ideia de democracia e associá-la ao sistema de dominação burguesa. A tão propalada democracia burguesa é assim entendida como o pilar do mundo “livre” capitalista.
Até mesmo as conquistas de direitos necessárias à época da ascensão burguesa são presentemente esvaziadas ou limitadas. Começou assim a luta ideológica para instrumentalizar e transformar os direitos políticos e sociais a seu favor, como se tais conquistas fossem uma concessão da burguesia. Daí, revelar-se cada vez mais contrarevolucionária, pois não lhe resta outra atitude.
Em suma, ao se mostrar reacionária diante da maré montante das reivindicações de todo tipo, a burguesia reconhece a máxima de Marx segundo a qual a história só pode ser entendida como lutas de classes, na etapa de sua pré-história. Na certeza de que finda as desigualdades sociais a humanidade ingressará definitivamente para a história.
E essa história dispensa a preservação de valores e conquistas, pois ela própria é o somatório das conquistas da humanidade. Já não precisará ficar sujeitas ao sabor dos interesses das classes dominantes, que não mais existirão.
Na atualidade, a Terra se depara com o dilema das intempéries climáticas. Elas têm ocorrido com crescentes ameaças porque provocadas por um modo de produção voltado exclusivamente para o lucro máximo e não para o bem-estar dos habitantes da Terra.
Não basta apenas a adoção de uma política de redução gradual das emissões de carbono na atmosfera. Isto é urgente, mas tanto quanto isso é preciso estancar a exploração e as práticas de espoliação que agridem os seres humanos em sua imensa maioria para o desfrute de uma minoria privilegiada e egoísta.
Nesse momento, torna-se igualmente urgente que se fortaleça a democracia de nosso tempo a partir da ampliação da participação popular, inclusive nos foros internacionais diretamente representados pelos vários povos da Terra. São exigências de um novo patamar de direitos sociais e humanos sem os quais continuaremos a reproduzir os mesmos vícios de uma democracia civilizatória meramente formal.
É preciso aplicar os valores civilizatórios na prática.
E ampliá-los.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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