Por Lincoln Penna

Quando o extraordinário se torna cotidiano, é a revolução (Ernesto Che Guevara)

Dia 9 de outubro de 1967 morreu Ernesto Che Guevara, depois de preso no dia anterior por uma força tarefa de grande monta. Foi um revolucionário libertário e um autêntico transgressor. Esta breve reflexão é em sua homenagem.

Sobre Che a sua história e a hipotética visão do mundo que teria após sua morte, eu escrevi o livro “Viajando com Che. Uma autobiografia não autorizada”, pela editora Multifoco. As presumíveis atitudes que Che Guevara adotaria hoje se encontram também nas linhas que seguem.

Falar em revolução é sempre uma transgressão em relação aos costumes ou às normas que regem as nossas relações sociais. Mas, há diversos tipos de transgressões e é sobre uma delas que devemos refletir. Trata-se da transgressão sistêmica diante de abusos de autoridade, da truculência operada em nosso cotidiano de maneira a tornar naturalizada tais práticas e, sobretudo, quando os seus cometimentos se justificam em nome da ordem. Aceitar em silêncio a afronta do poder é conformismo.

Mas, que ordem é essa que agride o ser humano em razão de sua aparência pobre, negra, ou de gênero tido como inaceitável segundo valores do preconceito? Esta ordem está podre e sobre ela deve prevalecer o sentimento de justiça, que neste caso traduz uma atitude civilizatória, do bem. Mas, quando essas práticas se tornam usuais, sem indignar a maioria de uma sociedade que se curva com a reverência da obediência a endossar essas ações, acaba predominando o conformismo que atenda ao sistema de poder. Com isso, estamos diante da aceitação tácita da opressão e de sua instituição como norma.

Conviver com esse tipo de transgressão que diariamente se toma conhecimento e admiti-lo porque é com outros e não consigo mesmo, ou porque esses outros são tidos e havidos como supostamente transgressores da ordem é aceitar que esses fatos não nos afetem. É no mínimo uma demonstração de insensibilidade injustificada, mesmo quando esses indivíduos alvos da repressão tenham praticado contravenções. E, por outro lado, incorporar comportamentos que são desejados por quem governa as sociedades desiguais de nosso tempo e as mantêm para ao adotar a repressão descabida intimidar justas insurgências reativas diante de atos de violência por parte dos agentes do poder.

Há cinqüenta e quatro anos Ernesto Guevara, o Che, morreu ao adotar uma atitude transgressora por não se deixar silenciar em face do quadro de miséria, indigência e sistemática espoliação de povos que vivem ainda abaixo da dignidade humana.

Partiu para a selva boliviana e acabou identificado e sofrendo o pesado aparato que o cercou e o levou à morte. Não cabe entrar no mérito de seu gesto. Cabe, sim, exaltar sua indignação mesmo que sabidamente soubesse que estava prestes a cometer a imolação, que o deixou vivo para a posteridade.

A rotina de vidas dentro de ordens sociais injustas marcadas por um quadro de sofreguidão, a conviver diuturnamente com a adversidade, não pode ser aceito com absoluta normalidade. O ser humano não nasceu para reproduzir quase que mecanicamente suas jornadas sem que possa vislumbrar inovações, descobertas, aventuras que fortaleçam sua autoestima e o faça feliz. Todavia, a felicidade compartilhada multiplica os desejos comuns e torna perigoso para quem detém o poder a possibilidade desse desejo comum transformar-se em impulsos transgressores, daí a adoção de formas de contenção e repressão que se estabelecem por parte das classes dominantes.

Quebrar a rotina do cotidiano através de comportamentos extraordinários é revolucionar a vida, mesmo que essa revolução comportamental não altere significativamente o que se passa na sociedade em que se viva. Porém, tais atitudes tendem a se reproduzir contagiando outras pessoas e fazendo crescer a disposição de não se aceitar toda e qualquer forma que venha a tolher os seus semelhantes. Até porque, só os poderosos se incomodam com o novo, com o extraordinário, na medida em que ele costuma transgredir as normas existentes.

Guevara quebrou normas usuais, da mesma forma que quebrou as que se praticavam no âmbito das organizações revolucionárias, como a dos partidos comunistas, que não endossaram, pelo menos plenamente, o impulso do revolucionário e internacionalista argentino, cubano e cidadão do mundo. Mesmo perdendo sua última batalha tornou-se figura imponente, e digna ao não temer as conseqüências de sua transgressão.

Periférico se considerado um desviante de normas instituídas pelos protocolos que regem as organizações, sejam elas de Estado e de seus poderes ou de partidos políticos e seus programas e normas disciplinares, Ernesto Guevara foi um transgressor, como sói acontecer com os revolucionários, que não precisam ser necessariamente vencedores para que assim sejam considerados. Nem sempre os vencedores são os modelos a responderem por eventuais correções, pois o certo é estar bem com sua consciência. É na sua observância que se encontra o rumo certo da coerência comportamental, e para isso não precisa da chancela de autoridades e muito menos do senso comum de quem se curva sempre às normas.

O Brasil tem sido o País da periferia desalinhada, e sua gente humilde vista com desprezo pelas ditas autoridades, que a suportam porque dela necessita como força de trabalho. Da mesma forma que o Brasil figura na periferia do sistema global do capitalismo, as periferias que se distribuem ao longo do território brasileiro têm cada vez mais invadido os centros metropolitanos para afrontar o descaso das classes abastadas que aas desprezam. Assumem, assim, o projeto de manutenção das estruturas arcaicas, que só são removidas quando é para dar mais concretude à acumulação desavergonhada de renda dos já possuídos.

O futuro dirá se esse projeto de desmonte do País temente das forças sociais iradas pela marginalidade a elas imposta terá condição de prosperar. Nem sempre o recurso do incremento do mercado, da aposta num desenvolvimento que privilegia os mais bem aquinhoados poderá sustar a onda gritante das massas destituídas de tudo, menos de dignidade, valor que não tem custo e não se adquire no mercado. Os exemplos de busca de riqueza quando não são acompanhados de justa distribuição para os que a criam são fadados senão ao fracasso ou à perpetuação de um sistema, cuja lógica é injusta.

Busquemos fazer do cotidiano o lugar do extraordinário para vivermos a aventura da vida.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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