Por Ricardo Cravo Albin

“Com o espírito acontece o mesmo que com o estômago: só se pode confiar naquilo que se pode digerir.” W. Churchill

As convergências se afunilaram nesta última semana e puseram a nu eventos indesejados. Reveladores de más intenções, alguns. Confirmações de verdades temidas, outros tantos.

Como todos os cidadãos em qualquer parte do mundo, fiquei chocado ao ver a invasão do Capitólio em Washington por uma turba de néscios extremistas, bárbaros a esgrimir a barbárie explícita do quebra-quebra de sisudos gabinetes dos representantes do povo americano. Mal acreditei no que via. Meu horror foi de tal ordem que naveguei entre dois blocos memoriais, a chacina de Sharon Tate em Hollywood nos anos 60 por fanáticos (talvez as fantasias hippies de muitos dos invasores de agora, em especial o tal indivíduo a portar chifres à cabeça), um eco de referência mesclado, nem sei bem porquê, ao ataque às Torres Gêmeas no 11 de setembro. No assalto ao Capitólio delinearam-se três essências: o absurdo de ataque físico e pessoal a um símbolo até então intocado, a democracia mais longeva do planeta, aliada à fragilidade da segurança no até então país mais seguro do mundo, sendo estuprado num estalar de dedos. Despia-se sem pudor o mito mais solene de sustentação do próprio país, sua democracia representativa. A última e terceira essência, o sequestro civil mais improvável e assustador, apontava para a Casa Branca aonde o Presidente balofo, carrancudo e desequilibrado parecia emitir voz de comando a um séquito de radicais, postos em caricaturas tais como um “exército brancaleone”, embora nutrido por perigoso valor simbólico.

Ali estava a América reduzida a uma Banana Republic.

O pior estava por acontecer no dia seguinte, quando Bolsonaro soltou mais um de seus fétidos puns, não um traquezinho qualquer, ao ousar insinuar que no Brasil seus apoiadores fariam o mesmo no Congresso Nacional, caso ele perdesse a hoje sua já desacreditada reeleição em 22. Mais uma vez o desmiolado Presidente, chamado com razão pelo colunista Merval Pereira de disfuncional, acertava outro um tiro nos pés, imagino que agora já transparentes, tamanhas saraivadas de furos por balas vêm acumulando desde sua posse. No último tiro “ao Álvaro” (ao pé), ele nos alerta com duvidosa frase de ato falho “O Brasil está quebrado, mas vão ter que me engolir até o fim de 2020”. Merval chama a atenção em sua coluna (06.01.21) para o Presidente estar agora empenhado em defender seu primeiro mandato, sem falar mais em reeleição. Alívio geral, apesar da impropriedade de afirmar o País quebrado. Isso, em meio ao desgoverno imposto a todos nós, quando cresce a revolta dos eleitores sobre a falta de respeito (e de tudo) em relação à vacinação coletiva. Essa torrente de lágrimas em que ele projetou o antigo gigante da América Latina, faz do Brasil um pigmeu aos olhos do mundo.

Aliás, o sequestro presidencial à vacinação joga em seu colo milhares de vítimas, multiplicadas nessas duas semanas. E transfere a recuperação da economia para Deus sabe quando. Em 2022 talvez. O que já agrega desolações e impossibilidades. Como, ainda ontem soube, à desativação dos barracões das Escolas de Samba, inclusive o desfile aventado para julho próximo. E o pior: a incerteza até para março de 2022. Resultado: a atividade turística murcha. E as centenas de artesãos que preparam o mais radioso show coletivo do mundo passarão fome. Por falta do que fazer.

Não me parece crível a inexistência no Planalto de uma boa alma sequer para advertir o Presidente de que sequestrar politicamente um país e seu povo é muito, muito perigoso. O detestável Trump aí está para comprovar. E a enfrentar um inédito impeachment às vésperas de ter que sair da Casa Branca, justificado pela tentativa de insurreição constitucional ao Congresso.


RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin,  Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.