Por Cláudia Maria Dadico

A maior concentração de acampamentos ciganos situa-se em Goiás, Bahia e Minas Gerais.

Dos vários preconceitos, estigmas e ódios que circulam na sociedade e constituem o Estado brasileiro, aqueles que atingem o povo cigano sejam, talvez, os mais arraigados e pouco debatidos.

O povo cigano, constituído por várias etnias, possui uma longa história de perseguição e violência no território europeu. Marcus Guimarais destaca que, desde a sua chegada aos territórios da Valáquia e da Moldávia, os ciganos foram sistematicamente escravizados e assim permaneceram durante muitos séculos, até a edição de leis abolicionistas na metade do século XIX.

O ápice dessa perseguição foi alcançado no período do nazismo. Entre os anos de 1933 e 1945 estima-se que cerca de 500 mil ciganos tenham sido assassinados dentro e fora dos campos de concentração, no episódio conhecido como o “Holocausto Romani”, “Porrajmos” (“A Devoração”) ou ainda “Samudaripen/ Sa Madaripen” (‘o assassinato de todos’). Outros sobreviventes foram esterilizados.

Essa história secular de racismo e ódio não foi superada.

Ao contrário, a situação dos ciganos na atualidade permite afirmar que o preconceito e a discriminação contra os ciganos não é um tema do passado, mas, ao contrário, persiste e ganha novas e múltiplas formas de manifestação.

Isso porque, de forma correlata à histórica discriminação por motivos étnicos, o povo cigano também tem sido alvo de outra forma de preconceito dirigido às pessoas pobres, em situação de rua ou indigência – trata-se da aporobobia, discriminação contra a pobreza e os pobres.

Um registro recente desse tipo de discriminação ocorreu em março de 2016, quando um grupo de torcedores do PSV Eindhoven, time de futebol holandês, foi filmado humilhando mulheres de etnia cigana, na região central de Madrid. A prefeita, à época, manifestou seu “desgosto” e sua “vergonha”, diante da imagem “humanamente terrível” porque “cidadãs da comunidade de Madrid sofreram situações vexatórias que não mereciam”.

Com base nessa realidade, o Conselho da Europa, sensível à questão, editou as Resoluções 2153/2017 e 2509/2019, recomendando aos países-membros uma série de medidas, especialmente no que tange ao acesso das crianças ciganas à educação. Em seu preâmbulo, a Resolução 2153 informa que “são estimados perto de 11 milhões de ciganos e viajantes vivendo na Europa hoje. Na média, eles são desproporcionalmente  pobres. Precário padrão de condições de vida, inadequado acesso aos cuidados de saúde, baixa renda,  alto desemprego  e discriminação  no acesso à educação  são a realidade diária para muitos ciganos e viajantes. Preconceito, incitação ao ódio e falta de confiança entre estes grupos, a população em geral e as autoridades públicas agravam essa situação e dificultam a superação destes problemas”.

Nas Américas, desde a Conferência Regional realizada no ano 2000, em Santiago do Chile, onde aprovou-se a Declaração e Plano de Ação de Santiago, a Comissão de Direitos Humanos da OEA tem instado os Estados-Membros a eliminar todas as barreiras legais e fáticas que dificultam o pleno exercício dos direitos civis, políticos, sociais e econômicos ao povo cigano.

No Brasil, em que pesem as diretivas internacionais, a situação das comunidades ciganas ainda é preocupante.

Estima-se que aqui vivam aproximadamente 500 mil pessoas integrantes de povos ciganos distribuídos em pelo menos três etnias: Calon, Roma e Sinti. Dados do IBGE apontam que em 2014, 337 cidades abrigavam acampamentos ciganos, em 21 Estados. A maior concentração de acampamentos situa-se em Goiás, Bahia e Minas Gerais. O pesquisador Aluízio de Azevedo Silva Junior aponta problemas na coleta de dados oficiais sobre as comunidades ciganas já que, além das dificuldades inerentes à sistematização da dados de grupos que migram internamente, há falhas nos dados acerca dos ciganos que fixaram residência e que não são mapeados e abrangidos pelas estatísticas.

As falhas na sistematização dos dados estatísticos refletem na inadequada formulação de políticas públicas, notadamente nas áreas de saúde e educação. Há ações e omissões das autoridades estatais que impedem o acesso do povo cigano a serviços públicos de qualidade, com o devido respeito às especificidades de sua cultura e de seus modos de vida, cujos impactos podem ser qualificados como formas de discriminação múltipla ou até mesmo de racismo institucional.

Para agravar ainda mais esse quadro, as comunidades ciganas têm ainda enfrentado um recrudescimento de crimes de ódio direcionados contra seus integrantes.

Um exemplo dessa peculiar forma de violência são os conflitos entre policiais militares e integrantes da comunidade cigana na cidade de Vitória da Conquista, na Bahia. Tais embates têm sido o pano de fundo para a proliferação de discurso de ódio contra ciganos nas redes sociais, além de atos de violência explícita, forçando a fuga e o deslocamento forçado de muitas pessoas integrantes destas comunidades.

Integrantes da Comissão Arns relatam que após a morte de dois policiais, uma verdadeira operação de retaliação tem atingido as comunidades ciganas da região, vitimando sete integrantes de uma mesma família – um pai e seus filhos. Mais um irmão, de 13 anos, recebeu um tiro de uma pessoa não identificada, em um comércio local. O pai foi baleado e está em custódia hospitalar. Há, ainda, suspeitas de que um homem tenha sido carbonizado em carro, confundido com um dos ciganos.

A estratégia de “vingança coletiva”, ou seja, de responsabilização de comunidades inteiras por supostos atos ilícitos de alguns de seus integrantes é uma das formas mais comuns de prática de crimes de ódio.

Vale lembrar que os crimes de ódio devem ser compreendidos como “lesões ou ameaças de lesão, em que o agente, sabedor da existência de um contexto de reiteradas e sistemáticas violações de direitos do grupo de pertencimento real ou suposto da vítima, de forma consciente e voluntária, seleciona-a, entre outros fatores, mas também, por razões de pertencimento, a grupo social em posição social subalternizada”. Trata-se de utilizar o crime como veículo de uma mensagem sombria de silenciamento e controle de comportamentos direcionada a um grupo social que também pode ser definido por sua etnia ou identidade cultural, tal como ocorre em relação às pessoas integrantes das comunidades ciganas.

É urgente o enfrentamento dessa questão, cujas notícias apontam para a existência de graves violações dos direitos humanos das comunidades ciganas, ainda sem uma solução adequada e que precisam cessar, sem demora. Urge traçar estratégias específicas e ações concretas para o combate do anticiganismo, definido como “um tipo especial de racismo, uma ideologia baseada na superioridade racial, uma forma de desumanização e de racismo institucional alimentada por discriminações históricas, que se manifesta, nomeadamente, através da violência, do discurso de ódio, da exploração, da estigmatização e da forma mais flagrante de discriminação”.

De outro lado, deve-se destacar que as discriminações enfrentadas pelos povos ciganos no acesso a políticas públicas no Brasil são objeto do Projeto de Lei do Senado nº 248, de 2015, de autoria do Senador Paulo Paim, cujo texto prevê incentivo à educação básica da população cigana, sem distinção de gênero, criação de espaços para a disseminação da cultura cigana, ensino da história do povo cigano, qualificação das línguas ciganas como bem cultural imaterial, acesso à saúde, à terra, à moradia, ao trabalho e à adoção de programas de ação afirmativa em favor da população cigana.

Referido Projeto de Lei encontra-se pronto para votação na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal. Tal iniciativa, se aprovada, pode representar uma importante etapa no processo de superação das exclusões e violações de direitos dos povos ciganos.

Tudo isso aponta para a necessidade premente de formulação e execução de políticas públicas que reafirmem, protejam e concretizem os direitos humanos do povo cigano e, a exemplo das iniciativas da União Europeia, posicionar o enfrentamento ao anticiganismo como um objetivo específico e premente na luta contra todas as formas de discriminação e ódio.

O Estado brasileiro lhes deve esse reconhecimento.

CLÁUDIA MARIA DADICO é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. Publicado inicialmente no Brasil de Fato.

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