Por Lincoln Penna –
Já é tempo de compreender que os povos latino-americanos têm uma história comum, como têm um destino comum. Estudá-la separadamente tem sido um dos erros da historiografia oficial. (Nelson Werneck Sodré)
Sodré que também era militar foi o primeiro de que temos conhecimento a compreender as independências das colônias ibéricas na América como um processo só, não obstante cada qual guardar as suas particularidades. E como tal devem ser estudadas como um momento de superação do colonialismo tradicional, desde os tempos da expansão mercantil até o advento do impulso capitalista já em sua etapa imperialista.
A antiga forma de exploração passaria a ser desenvolvida sob a forma de neocolonialismo, sem precisar por parte das economias industrializadas a ocupação literal de territórios. Bastava garantir concessões e o controle do fluxo de mercadorias. Mas, para isso, era preciso desalojar as metrópoles desses territórios, garantindo a todos liberdade para as transações comerciais.
A observação de Werneck Sodré, acima, faz lembrar outro historiador, o francês Pierre Vilar que concebia a história como uma construção. Esta percepção o fez defini-la como a ciência do movimento, logo em condições de acompanhar os processos sociais e políticos e em função disso rever, reconstituir, reavaliar constantemente os fatos históricos examinados. Com isso, é possível ressignificar situações consagradas pela historiografia. Neste caso se situa a Independência do Brasil, assim como a das ex-colônias espanholas do continente americano.
Duzentos anos após os acontecimentos que deram lugar ao rompimento do Vice-reino com Portugal e Algarves, fato que registrou a separação das terras portuguesas na América e as negociações que formalizaram a Independência do Brasil, indispensável é a sua reavaliação. Já no primeiro centenário em 1922, a efeméride foi marcada por um ato de reaproximação com a ex-metrópole, presente no discurso presidencial de Epitácio Pessoa, bem como nos festejos realizados, nos quais somente os brancos de origem europeia foram mencionados e nenhuma alusão se fez aos demais povos brasileiros, isto é, aos afrodescendentes e aos nativos ou indígenas.
Nesses últimos cem anos, no entanto, o movimento propositivo em relação aos povos que compartilharam a formação nacional brasileira vem provocando a necessidade de novas abordagens sobre o significado da Independência. Mais recentemente, o reconhecimento das nações originárias das populações nativas e o crescimento de uma consciência a respeito dos males causados pela chaga da escravidão, permitiram olhares revisionistas de modo a refazer as análises até então voltadas quase unicamente pela louvação aos colonizadores.
Na realidade, o ato do dia 7 de setembro de 1822, a data de nossa Independência, derivou de uma transferência de dependência. Passou da condição de empório colonial e mercantil para fazer parte integrante dos negócios ingleses. Surgia, portanto, como uma nova nação cativa dos interesses alheios, pois esta era a condição da maioria de seu povo. E essa situação se estenderia a grande maioria dos colonos subjugados às determinações da cobiça de um império que se expandira e alcançara todos os continentes. Logo, as independências promovidas tornaram esses países subordinados, uns mais outros menos, a um novo centro metropolitano.
Situação semelhante ocorrera com as colônias espanholas da América. Ao lograrem romper os vínculos com a então metrópole tornaram-se quase todas, direta ou indiretamente, integradas ao circuito neocolonialista britânico. Era o século do imperialismo a tornar mundial desde essa época o conjunto das relações econômicas, políticas e diplomáticas tendo como centro irradiador a acumulação ampliada do sistema capitalista.
Nesse contexto, fica evidenciado que existia uma política de emancipação controlada das colônias ibéricas por parte da Inglaterra.
A final, a área abrangia toda a América do Sul e mais a América Central, portanto um vasto território rico em recursos naturais, minerais e ao mesmo tempo importante do ponto de vista estratégico, situação que por acaso não mudou muito até os nossos dias.
Daí, os acordos e tratados efetuados com as metrópoles da Espanha e Portugal e depois com os Estados da região tornados independentes. Mas estes se encontravam sob uma espécie de guarda inglesa, que em troca de vantagens subsidiava as novas nações já desvinculadas de suas antigas metrópoles. Em todas elas, houve lutas intestinas com vistas ao provimento de suas condições de país independente através de muitos fatos e movimentos de real resistência. É o que se poderia chamar de preliminares uma consciência nacional em formação ainda em curso.
No caso brasileiro, esse processo atravessou longo percurso desde antes do fato histórico que protagonizou a data de nossa Independência, o ano de 1822, passando pelos embates iniciados em 1817 e que se estenderam até as vésperas do golpe da Maioridade de 1840. Sobre esse largo e movimentado período vale a pena se debruçar, muito embora haja um número apreciável de obras que relatam tais eventos.
Contudo, não há como inventariar esse processo em separado com o que ocorria em toda a extensão do continente, particularmente com o legado ibérico aqui deixado pelos conquistadores dessa região. Neste particular, o historiador Sodré tem toda a razão e é lamentável que até mais recentemente não se tenha verdadeiramente uma história da independência latino-americana com todos os problemas dela decorrentes. Há essa compreensão, mas a nossa historiografia carece de um esforço conjunto de pesquisadores que tenham o compromisso de realizar uma história que seja ao mesmo tempo um ensaio de prospectiva histórica.
E essa visão de conjunto dos diversos processos de independência da América ibérica na qual se entrelaçam os impulsos libertários genuínos, os desejos de interesses da gente que se tornara classe dirigente nessas ex-colônias e, sobretudo, a política de expansão dos graúdos apetites ingleses, é de importância crucial. Inclusive para que essa independência inconclusa presente em praticamente todos os países que emergiram de uma condição de colônias possa traçar os seus destinos como países, e cuja independência seja de fato uma condição de libertação desses povos.
Essa prospectiva histórica é o caminho para a libertação do jugo dos interesses alienígenas, que têm infelicitado a nossa gente. E também a condição necessária para que varremos a cultura escravocrata e os seus tristes legados presentes nas atitudes racistas, que não pode mais ser naturalizada e mascarada como tem acontecido. Só assim, entre outras providências altaneiras e a capacidade de promover uma unidade de destino estaremos no rumo certo.
Entre nós, brasileiros, a proximidade do bicentenário pode e deve ser um momento de reflexão e de proposição concreta sobre o que desejamos como nação ou nações, uma vez que temos de conviver com as diversidades de povos nativos, os nossos indígenas, entre tantos outros que se agregaram, oriundos de diversas etnias, culturas de diversas partes do mundo.
Ao assim procedermos poderemos dar um salto na direção do sonho que todos nós acalentamos, qual seja a da Independência como ponto de partida com vistas à construção de uma soberania latino-americana.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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