Por Lincoln Penna

A nossa ordem social é um enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores. Esterco doloroso e gemebundo. Nasci na classe privilegiada e nela vivi até hoje, mas o que vi da miséria silenciosa nos campos e nas cidades me força a repudiar uma ordem social que está contente com isso e arma- se até com armas celestes contra qualquer mudança. (Monteiro Lobato)

O título deste artigo toma emprestado o que disse João Batista Lima e Silva em resposta à carta de Maurício Pinto Ferreira, publicada no jornal Voz Operária de seis de outubro de 1956, no qual o autor disse: “Não se poderia adiar uma discussão que está em todas as cabeças”. Tratava-se de um debate que precedeu à mudança das orientações dos comunistas até então a manifestar desprezo pela questão democrática, no contexto dos meses que se seguiram aos processos de depuração das práticas stalinistas.

Quanto aos dizeres de Monteiro Lobato, acima em epígrafe, eu o destaco para discorrer sobre uma questão que tem sido freqüentemente negligenciada, sobretudo nos debates políticos a envolver correntes da esquerda brasileira, e aquelas que não sendo de esquerda também as repercutem. Trata-se da democracia, como expressão social inexistente concretamente (vide Lobato), e como uso indevido por parte das classes patronais dominantes. A reflexão e o debate ensejados pela sentença de João Batista acima precedeu uma série de mudanças entre os fins da década de cinqüenta e os primeiros anos da década seguinte, como se sabe.

A luta pela democracia vai além da defesa de instituições que garantam as liberdades de opinião e reunião de toda cidadania, embora sejam importantes. Ela pressupõe um confronto ideológico, porquanto há várias concepções de democracia. E elas representam os interesses de classe, daí disputarem no terreno da política a paternidade e autoridade sobre o seu significado. Os ideólogos das classes que detêm o poder constroem os atributos da democracia que quiserem, e os veiculam como princípios a serem observados por todos.

Assim, a apropriação de uma variante de democracia como portadora da verdadeira representação democrática decorre do fato de as classes dominantes delas costumarem assim proceder, de modo a justificar a dominação de classe.

Desse modo, as classes trabalhadoras são instadas a aceitarem essa situação em virtude de circunstâncias que não as habilitaram a exercerem o poder.

A naturalização da sociedade de classes, assim como as desigualdades sociais dela decorrentes é reforçada por uma narrativa a envolver o princípio da paz social, isto é, da resignação das massas por sua condição de destino a elas reservada. Na verdade, é um discurso ideológico mediante canais concebidos para fazer valer a dominação como resultante de condições que independem dos indivíduos.

Um filósofo não marxista, como Norberto Bobbio, curvou-se ao fato inconteste segundo o qual Karl Marx foi o primeiro estudioso das relações sociais historicamente constituídas a explicar de forma transparente que as revoluções só podem irromper nas classes subjugadas. E isso acontece para justamente romper a sua condição de reprodutoras da dominação das classes dominantes. Daí, o desespero destas diante da iminência da eclosão de movimentos revolucionários.

E quando esses fatos acontecem como epicentro das lutas de classes, os aparelhos ideológicos e repressores do Estado que detém o poder da dominação sobre a massa da sociedade faz dessas legítimas manifestações uma afronta à democracia. Como se a democracia existisse para legitimar as instituições encarregadas de dar cobertura ao Estado da dominação de classe. É uma forma de atrair para as classes dominantes a propriedade de um sistema de opressão em nome de uma suposta ordem democrática. Todavia, é fundamental que se deixe sublinhada a premissa de que democracia e capitalismo, para se falar de nossa realidade, são representações genuinamente antagônicas.

Nesse sentido, a democracia dispensa adjetivações. O ideal democrático é aquele que expressa o poder popular, isto é, a representação das grandes massas que produzem para o bem-estar de toda a humanidade.

Sem as forças de trabalho no controle das decisões políticas, forças essas hoje ligadas tanto à produção como aos serviços, logo os assalariados, não pode haver democracia genuína.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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