Por Kakay –
Decisões monocráticas concentram poder excessivo em indivíduos –como nos casos de crime comum ou de responsabilidade do presidente da República.
Quando comecei a escrever sobre os “poderes imperiais”, referindo-me ao excesso de concentração de poder nas decisões monocráticas, o objeto da minha perplexidade não eram a Presidência da Câmara e o procurador-geral da República. Como advogado há 40 anos na Suprema Corte, minha contrariedade se voltava, e se mantém, às decisões de ministros do Supremo que decretam prisões e não podem ser impugnadas por habeas corpus. Inconcebível para mim essa jurisprudência. É o reconhecimento da infalibilidade do ministro da Corte, mesmo estando em jogo a liberdade do cidadão. Um absurdo e um erro. Meu descontentamento é este: decisões monocráticas que se eternizam e não são submetidas ao colegiado. Especialmente aquelas que suspendem atos de outros Poderes da República.
O caso mais pungente diz respeito a uma decisão do ministro Fux, de janeiro de 2020, que, monocraticamente, proibiu a entrada em vigor da lei que implementava o juiz de garantias, o maior avanço no processo penal brasileiro. Grosso modo, é uma inovação legislativa que proíbe o magistrado que defere as medidas cautelares, prisão, busca e apreensão, dentre outras, de julgar o caso. Tal lei dificultaria a vida de juízes políticos, como os “Moros” da vida, e também a corrupção do sistema de justiça. Como já ensinava o grande Ruy Barbosa.
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da honra, a ter vergonha de ser honesto”.
Imagine que a norma que implementou o instituto do juiz de garantias foi objeto de longa e exaustiva discussão no Congresso Nacional. Inúmeras audiências públicas, reuniões com especialistas e infindáveis debates antes de ser submetida e aprovada por larga maioria, tanto na Câmara quanto no Senado. Após a votação das duas Casas, o presidente da República outorgou a lei, sem vetos. E aí, um pronunciamento monocrático de um ministro do Supremo se sobrepôs a todo o Poder Legislativo, que detém a autoridade que emana da vontade popular. É certo que ao Judiciário é dado o direito de “errar por último” no sensível jogo de estabilidade democrática entre os poderes. Mas, evidentemente, que seja um “erro” proveniente de uma decisão colegiada. Uma resolução como essa, que impede o juiz de garantias e cala o Congresso Nacional, se for monocrática, teria que ser submetida imediatamente ao plenário da Corte Suprema, sob pena de causar desequilíbrio entre os poderes. Essas são posições que defendo há tempos e abertamente.
Na mesma linha de raciocínio, comecei a questionar, muito antes da CPI da Covid, os poderes imperiais depositados nas mãos do presidente da Câmara, no caso de crime de responsabilidade do presidente, e do procurador-geral da República, no caso de crime comum do presidente da República. Com a importância histórica da CPI no Senado, o assunto tomou rumos mais relevantes. O país parou e se mobilizou para acompanhar a comissão parlamentar. Imagine o efeito deletério na credibilidade das instituições, especialmente do Senado Federal, se o relatório final da investigação for, simplesmente, arquivado pelo presidente da Câmara, em caso de ser apontado crime de responsabilidade, e pelo procurador-geral da República, havendo proposta de ocorrência de crime comum.
Desde o início dos trabalhos da CPI, já havia proposto essa discussão, até por coerência ao que venho defendendo, mas, agora, com os olhos voltados para o dramático momento brasileiro. É correto tirar a chance de uma discussão aberta, com ares democráticos, para resolver a imputação de responsabilidade de quem nos negou o ar, o direito de respirar e de viver? É democrático que tal decisão se dê de maneira individual? É republicano?
Fui um dos signatários do chamado “superpedido” de impeachment, que resumiu todos os requerimentos que já tinham sido feitos, e nem resposta merecemos do presidente da Câmara. Poder imperial! Da mesma maneira, assinei o pedido de aditamento à representação apresentada pela OAB ao PGR, imputando crime comum ao presidente da República. Nenhuma resposta. Poder imperial!
Como ensina o mestre Boaventura Sousa Santos: “Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem; lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize.”
É simples o questionamento. E coerente. Proponho que o presidente da Câmara, ao receber o relatório final de CPI de uma das Casas Legislativas, não concordando com a apresentação do pedido de impeachment, que arquive e submeta seu despacho à soberania do plenário. Simples. Da mesma maneira, o PGR, que é o dominus litis, não concordando com a tipificação do crime comum, submeta essa decisão a um colegiado.
Ou, até melhor, que estabeleçamos, por lei, uma legitimidade extraordinária para a propositura de uma ação penal subsidiária, nos casos em que o relatório da CPI indicar a prática de crime comum e for constatada a inércia do PGR. Não podemos subtrair do Supremo Tribunal o poder de decidir sobre o processamento ou não de uma ação penal contra o presidente da República em casos dessa gravidade.
São duas provocações distintas e democráticas. Uma trata do poder popular representado pelo plenário da Câmara, verdadeiramente eleito pelo voto direto, no caso de crime de responsabilidade. Outra, do poder depositado na mais alta Corte do país, a quem cabe dar o contorno constitucional e a definição se houve ou não crime comum por parte do presidente da República. Simples assim.
Chamado a conversar com senadores da CPI, ressaltei o que todos eles sabem. À comissão parlamentar de inquérito cabe não somente investigar, mas também apresentar propostas de mudanças legislativas. E são essas que devem retirar os tais poderes imperiais. Em nome de um Brasil republicano e em homenagem aos milhões de brasileiros que esperam uma resposta serena, mas firme, por parte do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.
Enquanto as cúpulas decidem os limites dos poderes, milhares de brasileiros insepultos marcham com a gente em busca de uma decisão que devolva a paz que nos foi subtraída pela barbárie, pelo abuso e pelos desmandos.
É hora de dar um basta. Sem esquecer do velho Ulysses Guimarães, que dizia que “na política, e em certos aspectos, os mortos governam os vivos…”
KAKAY ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 61 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e colunista da Tribuna da Imprensa Livre. Publicado inicialmente em Poder 360.
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