Por Lincoln Penna –
A miséria religiosa é a expressão da miséria real e ao mesmo tempo o protesto contra miséria real. A religião é o gemido da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, assim como o espírito de uma situação sem espírito. Ela é o ópio do povo.
A supressão da religião enquanto felicidade ilusória do povo é a exigência de sua felicidade real. A exigência de que renuncie a suas ilusões sobre sua situação é a exigência de renunciar a uma situação que necessita de ilusões. A crítica da religião é, portanto, em germe, a crítica do vale de lágrimas cuja auréola é a religião. (K. Marx)
A presença de pessoas distintas daquelas que formam o reduto das chamadas classes médias, me fez lembrar a sentença primorosa de Marx ao se referir ao papel desempenhado pela religião, sobretudo quando ela é usada com o objetivo de anestesiar as pessoas e não confortá-las para que deem a volta por cima. A sentença que figura acima, o ópio do povo, acabou por reduzir e simplificar a avaliação do sentido da religião, daí ter transcrito os dois parágrafos em sua extensão para que os leitores que o desconhecem por inteiro possam perceber o seu alcance. E por que estou citando essa passagem do filósofo?
Desde o momento em que o catolicismo aprisionou o legado de Jesus de Nazaré e construiu a imagem de Jesus Cristo e em decorrência, o Cristianismo, foram instituídas as igrejas. Erguidas a simbolizar um poder espiritual que se instalou em vastas áreas do mundo, desde o Império Romano, a ideia de religiosidade passou a representar uma evasão da realidade. Essa fuga e a conversão da fé na construção dos dogmas substituíram a crença genuína por aquelas administrada nas capelas.
A atitude de ortodoxia nos cultos das igrejas católicas, adotadas em muitas de suas inúmeras dioceses, levou a que muitas pessoas se sentissem distantes e em geral passassem a buscar outras igrejas ou cultos. E essa migração deveu-se em grande parte pela acolhida protagonizada principalmente pelas entidades neopentecostais, a aparentar na forma, representações que levavam os crentes a se sentirem sob o manto protetor que esperavam.
Por outro lado, existe verdadeiramente um contingente não desprezível de brasileiros, jamais adotados pelas forças políticas mais conseqüentes. Com a acolhida política inexistente por parte dos partidos ideológicos de esquerda, pois em geral são vistos como alienados, e o são de fato, e por parte da chamada classe política. Configura um lumpesinato da política convencional, deixado sistematicamente de lado. São toscos porque ignorantes e incapazes de uma visão crítica dos aproveitadores, que se locupletam em função da ingenuidade desses incautos para obter apoio para suas empresas de exploração da fé alheia. Dessa maneira são capazes de se integrarem a qualquer aventura para se sentirem visíveis.
Resultado de uma sociedade das mais desiguais, injusta e prepotente, na qual desfilam seu egoísmo e as atitudes racistas e homofóbicas, entre tantas outras taras, essa camada social desprezada como ninguém aparece como a base social que engorda o bolsonarismo. Mas, da mesma forma que são fiéis ao seu mito, pode da mesma forma com ele se desiludir, dependendo das oscilações que costumam ser comuns aos políticos tradicionais diante de situações que venham a exigir mudanças de comportamento.
E Bolsonaro faz desse jogo de morde e assopra o seu método de ação política, com os riscos de corre cada vez que é forçado a agir assim.
Mas, as sucessivas perdas de quadros do governo, presidido sabe-se lá como pelo capitão em franca histeria, produzem estragos em sua base tanto governamental quanto eleitoral. Os que com ele seguem sem piscar os olhos possuem uma suposta força. São políticos de relativa influência nos meandros da burocracia governamental, tais como os militares – destes cabe acentuar os que formam o pelotão dos revanchistas, que jamais admitiram a transição democrática – e os eternos bajuladores do momento, geralmente beneficiados por agrados que vão de cargos públicos a vantagens legais e ou ilegais de modo a mantê-los firmes em apoio ao governo. Os demais são velhas raposas da política, fazedores e desfazedores de governanças, e dispostos a tudo desde que se mantenham próximos das benesses do poder político do momento. Assim foi no passado e tem sido no presente. O Centrão representa esta corrente.
Assim, da mesma maneira que esse contingente desprezado historicamente e resultante de um processo habitual de políticas públicas excludentes, dispersos na base de apoio de Bolsonnaro, tendem a forjar um movimento que pode existir sem ele. E o afastamento ou a perda total de significância de quem essa massa se associou não implica em seu desaparecimento. Isto é o bolsonarismo veio para ficar e demonstrar que deseja interferir na vida política do País. Pode servir a aventureiros mais qualificados que venham a surgir. E se esse alguém trouxer consigo um projeto de poder centrado em postulados totalitários, o fascismo pode vir a se manifestar com vigor. Afinal, o fenômeno político do fascismo não precisa ter as mesmas características dos regimes fascistas do entre guerras.
Massas desiludidas, sem esperanças e naturalmente revoltadas, são facilmente cooptadas pelos condutos que as levam a aderir a projetos imediatistas e autoritários. São projetos que identificam inimigos que supostamente respondem pelo sentimento de mal estar dessas massas desesperadas e sem rumo certo. E em nossa história política duas são as razões que são utilizadas para a responsabilização dessa situação em que vivem: a propalada ameaça comunista e a corrupção. Com isso, criam os laços com as camadas médias urbanas, também ansiosas de segurança e proteção, tementes das perdas que podem sofrer de seus parcos recursos.
Além disso, cabe dizer que o fascismo é próprio das lutas de classes quando elas atingem níveis que exigem das burguesias medidas de auto defesa diante de fortes demandas das classes subalternas. Mesmo no neoliberalismo, que de certa forma prescinde dos estados nacionais por se tratar de um estágio do capitalismo mundializado pela financeirização, o perigo das alternativas que venham contestar o domínio da banca financeira provoca o uso de recursos excepcionais para se manterem em guarda frente a possíveis alterações nas relações de poder.
Devemos como cidadãos conscientes da verdadeira ameaça que estamos padecendo e com desdobramentos ainda por vir, estarmos atentos, vigilantes, em defesa do estado democrático de direito. Só assim poderemos rechaçar a ameaça do regresso. É hora de unidade em torno dos preceitos básicos de civilidade e de defesa de nosso patrimônio material e espiritual, sem o que estaremos mergulhando no caos crônico, cujo retorno costuma tardar. Isso significa a defesa da integridade nacional, a sustentação da soberania das nações que habitam o nosso espaço territorial. E, sobretudo, talvez o mais importante nessa quadra da geopolítica mundial, a defesa da soberania nacional. Para isso, é preciso uma democracia interna e um olho permanente na cobiça de grupos internacionais que rondam o País.
É certo que as forças que hoje se encontram à testa do poder governamental possuem a faculdade de se unirem contra o vendaval das ações de natureza popular, mediante insurgências decorrentes de perdas continuadas. Porém, essa unidade nada tem a ver com os interesses do povo brasileiro e, por isso, mesmo, assim procedem para defender somente os seus interesses. O povo em sua sabedoria instintiva já percebeu que a elevação de sua indignação reside no fato de ter sido objeto de tantas falcatruas contra si. Daí, a esperança de que a consciência das necessidades possa ajudar na mudança de suas precárias condições de vida, a partir de escolhas que propiciem de fato a reconquista de perdas ocorridas nesses últimos anos.
Evitemos o esgarçamento de nossa gente. Cuidemos dos que a despeito de valorizarem suas convicções se esquecem de que em momentos de fratura econômica, social e política, a prioridade é mantermo-nos coesos em face das tentativas de aventuras que não levam senão a aprofundar ainda mais o fosso existente entre nós. Com a mesma intensidade, devemos dizer um sonoro NÃO ao retrocesso e a novas perdas de nossos valores humanitários. É preciso dizer um SIM à unidade das forças que lutam por um Brasil que acolhe os mais vulneráveis, para que não engrossem a massa de desiludidos, presa fácil para as aventuras totalitárias.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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